1
—
Fecha a porta com
força — disse Norberto para Leonardo, logo depois de este ter
entrado no carro.
Leonardo
obedeceu, mas a porta não. Bateu e voltou a abrir-se. Mais um
empurrão seria suficiente para a fazer em pedaços.
Norberto
saiu do carro, tirou um cordel da bagageira e pediu ao amigo que
prendesse a porta por dentro.
Leonardo
amarrou uma das pontas do cordel ao manípulo da porta, passou o fio
por trás do seu assento, deu uma volta sobre si mesmo, pôs-se de
joelhos, esticou-se e foi amarrar a outra ponta no manípulo da porta
traseira do lado oposto àquele em que se encontrava. Retesou bem o
fio, segurando-o com três nós apertados.
—
Está
resolvido — disse.
Norberto
não ligou. Habituara-se aos pequenos problemas do Opel branco e
enferrujado que possuía há anos e que representava tudo na sua
vida, para além da mãe, com quem residia num pequeno apartamento da
Rua da Rosa.
Leonardo,
seu único amigo, tinha um quarto alugado na Rua da Esperança e uma
filha que raramente via.
O
carro era onde se encontravam com regularidade. Todas as manhãs, os
dois saíam de casa, pontualmente, e dirigiam-se para o Opel, como
quem ia para o emprego, embora nem um nem outro trabalhasse.
Encontravam-se no automóvel, apenas. Se havia gasolina, davam umas
voltas por Lisboa. Se não, deixavam-se estar sentados no veículo,
independentemente do sítio onde se encontravam, e ficavam para ali a
conversar durante horas.
Às
vezes, Norberto ia almoçar a casa, outras vezes não. Quando o
fazia, trazia uma sandes para Leonardo, que permanecia no carro à
espera. Ambos fumavam muito.
Ao
despedirem-se, à noite, deixavam o automóvel onde calhava. Para
poupar gasolina, Norberto nem sempre o trazia até à porta de casa.
Um veículo no estado em que o seu se encontrava não corria o risco
de ser roubado. A sua aparência repelia mais do que atraía. O
ladrão que o levasse teria mais complicações do que vantagens. No
dia seguinte, os dois faziam a pé o caminho até ao sítio onde
tinham deixado o Opel na noite anterior. Sempre era uma maneira de
desentorpecerem as pernas.
—
Tens
aí um cigarro? — perguntou Norberto, distraído a olhar para as
sombras da avenida Almirante Reis.
Leonardo
estendeu-lhe um maço amarrotado de SG Gigante com dois cigarros
dentro.
—
O
dia promete... — resmungou Norberto.
—
A gente
desenrasca-se — comentou Leonardo, recostando-se no assento e
acrescentando que tinha dormido mal durante a noite. Tivera uma
comichão que o deixou todo vermelho de tanto se coçar. Levantou a
camisa e mostrou uma parte das costas, mas Norberto mal olhou. Estava
absorto, distante, preocupado.
—
Vamos
ter que fazer qualquer coisa — acrescentou Norberto.
—
Não estejas com
essa cara — replicou o amigo.
—
Hoje
é uma coisa, amanhã é outra...
—
O que importa é não
desanimar.
Norberto
acendeu o cigarro e aproveitou o silêncio para deixar morrer a
conversa. Tragou, aguentou a respiração e, por fim, expeliu o fumo.
2
—
Estes gajos só
chateiam — comentou Norberto ao ver um carro da polícia estacionar
perto da Cervejaria Portugália. — Pensam que é tudo deles.
—
Temos gasolina para
ir a algum sítio? — retorquiu Leonardo.
—
Isso é o menos. A
rua ainda desce um bocado.
—
É melhor estarmos
quietos.
Eram
onze e trinta da manhã. Norberto e Leonardo tinham o dia todo à sua
frente. Podiam fazer o que quisessem. Conversar, olhar as pessoas que
passavam, reparar em quem entrava e saía dos prédios, observar os
novos modelos de carros, seguir os movimentos da polícia, contar o
tempo que os semáforos demoravam a mudar, analisar com minúcia as
feições dos transeuntes, imaginar as vidas deste e daquele. Não
lhes faltava com que ocupar o tempo.
—
Tenho aqui uma moeda
de dois e quinhentos das antigas — disse Leonardo, que esvaziara a
carteira no colo e se pusera a contar o dinheiro de que dispunha.
Norberto
olhou de soslaio, mas não fez comentários. Não lhe apetecia falar.
—
Talvez valha alguma
coisa — acrescentou Leonardo. — Há dias, ouvi dizer que um
fulano vendeu uma moeda por mais de cem contos. Mas devia ser uma
bastante mais antiga do que esta.
Tudo
somado, Leonardo tinha em sua posse 625$00, sem contar com a moeda
antiga de dois e quinhentos.
—
Tenho que comprar um
fato... — afirmou Leonardo ainda. — Um fato para ocasiões
especiais...
—
Já imaginaste
quantos carros passam aqui durante um dia inteiro? — perguntou
Norberto. — Estão sempre a passar... Acho que nem se consegue
contá-los. Porque uns andam numa direcção e outros noutra. Quantos
litros de combustível consomem por dia só nesta avenida?
—
Há pedaço, saiu
daquele prédio uma rapariga que olhou muito para ti... —
interrompeu-o Leonardo. — Deu a sensação de que te conhecia.
—
Seria interessante
saber a quantidade de combustível que Lisboa inteira gasta num dia.
Do
carro da polícia que havia estacionado junto à Cervejaria
Portugália saíram dois agentes. Um deles deu uns passos na direcção
do carro de Norberto e este teve um aperto no coração.
Acontecia-lhe aquilo sempre que um polícia se aproximava dele. Houve
tempos em que estremecia só de vê-los à distância, mas aprendera
a dominar-se. Contudo, ainda hoje, se algum agente o abordava, ficava
imediatamente nervoso e inquieto, como se tivesse algo a esconder.
Ao
ver o guarda dirigir-se para o seu carro, Norberto percorreu
mentalmente os bolsos e os compartimentos do veículo, tentando
lembrar-se onde tinha guardado os documentos. Nunca os punha no mesmo
sítio. Por isso, às vezes, não se lembrava do lugar exacto onde os
pusera da última vez.
Todavia,
o guarda não chegou até junto dele. Parou a poucos centímetros de
distância do carro que estava estacionado à frente e pôs-se a
observá-lo, por dentro, com atenção. Punha a mão em pala diante
dos olhos para os proteger da luz que o vidro reflectia e espreitava
em todas as direcções. Concluída a inspecção ao interior do
veículo, o polícia contornou-o, devagar, metodicamente, como se
pensasse com os pés, e parou junto ao porta-bagagem. Pressionou a
fechadura com a mão e viu que não abria. A seguir, dirigiu-se ao
carro de Norberto, perguntou a Leonardo se por acaso vira o
proprietário do outro veículo.
No
assento do lado, Norberto não conseguia disfarçar a angústia
provocada pela proximidade do agente. Sentiu-se mais tranquilo quando
Leonardo respondeu que não, que não vira o proprietário do carro,
o que fez com que o guarda se afastasse lentamente, com cara de
desconfiado.
3
Nesse
mesmo dia à noite, os dois ainda se encontravam dentro do carro. Não
tinham ido a parte alguma. Não tinham feito nada. Só tinham estado
à espera que o tempo passasse por baixo dos seus traseiros
enterrados nos assentos.
Meteram
2.425$00 de gasolina e seguiram na direcção da marginal de Cascais.
Gostavam de avançar ao longo do rio para se perderem na estrada que
acompanhava o oceano. Era como se bebessem a luz nocturna que fazia
com que o céu continuasse azul pela noite dentro.
O
mês de Maio, em Lisboa, era propício a serões prolongados. Como
Norberto e Leonardo não tinham o hábito de frequentar restaurantes
nem cafés (excepto para comprar tabaco), ficavam geralmente a
conversar dentro do automóvel, ou faziam-no deslizar, pacatamente,
até queimarem as últimas gotas de combustível. Se não conseguiam
chegar ao destino, encostavam à berma da estrada.
A
escuridão protegia-os. Por isso, sentiam que tinham mais liberdade.
Durante o dia, eram facilmente olhados. Vistos. Marcados. O que não
lhes convinha. Para que ninguém soubesse do seu modo de vida. A
noite, com os seus candeeiros de rua, ou com as suas incontáveis
estrelas, era uma espécie de cobertor que os aquecia.
Quando
saíam da cidade, a praia do Guincho era um dos seus refúgios
preferidos. A bravura das ondas atraía-os. Norberto punha-se a olhar
para as estrelas que havia no céu e dizia que o seu sonho era viver
no espaço, quanto mais longe da Terra mellhor.
—
Dizem que há biliões e biliões de estrelas... — explicava — e,
se calhar, também há biliões de universos. O nosso universo deve
ser apenas um entre biliões. E estes devem fazer parte de um
mega-universo que, por sua vez, deve ser apenas um entre biliões de
mega-universos. Só assim faz sentido falar em infinito...
Leonardo
não lhe deu resposta. Quando o amigo se punha a divagar sobre outros
mundos, ele preferia ouvir, ou simplesmente resmungar sílabas sem
nexo. Às vezes, a sua cabeça perdia-se, fazia confusão,
atrapalhava-se. Então, Leonardo cheirava o sal da maresia que enchia
tudo à volta e inspirava o ar para sentir melhor que fazia parte da
paisagem.
Norberto
continuava entregue aos seus raciocínios. E seguia em frente, como
se estivesse muito bem sentado na cabina de uma nave espacial com
capacidade para viajar através das poeiras cósmicas. Fazia contas
atrás de contas, imaginando-se detentor do conhecimento total.
Biliões de mega-universos eram muita coisa. Como se cada um desses
mega-universos fosse um dos muitos grãos de areia que se perdiam na
escuridão da praia. Nessas alturas, o seu corpo parecia mais leve
sobre o solo, quase a evaporar-se.
A
solução seria construir um veículo espacial que se deslocasse à
velocidade do pensamento. Se o conseguisse, Norberto seria capaz de
viajar por distâncias impossíveis, realizando um sonho de gerações.
Havia de alcançar buracos negros, verdes, amarelos, cor-de-rosa... e
fruir a imensidão do espaço sem constrangimentos. Por fim, depois
de anos e anos vagueando pelo infinito, o seu corpo havia de
consumir-se em chamas e desaparecer nos múltiplos pontos que abriam
portas a outros mundos para lá dos mundos.
—
Os biliões de
estrelas que conseguimos contar equivalem aos primeiros números que
uma criança balbucia. São apenas os passos iniciais...
—
Já me sujei outra
vez! — interrompeu Leonardo, a despropósito. — É sempre a mesma
coisa. Como fui fazer esta porcaria?
Era
inevitável. Leonardo encostava-se a uma porta, a uma parede, a uma
vitrina, sem dar conta de que o fazia, e lá lhe aparecia uma nódoa
nas calças ou na camisa. Logo a seguir tinha que ir a casa mudar de
roupa porque não era capaz de passar muito tempo com uma peça
manchada.
—
É demais — reagiu
Leonardo. — Não tenho emenda. Sou assim desde pequeno. Estavam
sempre a repreender-me. Não havia roupa lavada que desse conta do
recado. Se calhar, é por isso mesmo que não resolvo o problema.
—
Isso é o menos —
retorquiu Norberto, voltando ao seu tema favorito. — O mais urgente
é abandonarmos esta casa fechada, o planeta Terra, derrubarmos
paredes, portas, janelas, e partirmos em busca de quem nos espera há
milhões de anos. Afinal, estamos acompanhados, de todas as formas,
em todos os sentidos, em todas as dimensões. O nosso destino não
pode ser mirrar, aqui, definhar para sempre, com a poesia do cosmos à
frente dos olhos.
4
—
É melhor irmos
andando — disse Leonardo, que não se sentia bem só de pensar na
nódoa que tinha na camisa. — Oxalá a gasolina dê para chegar a
Lisboa...
—
Em termos cósmicos,
é indiferente estarmos na praia do Guincho ou em Lisboa —
argumentou Norberto. — É uma distância insignificante. O que tu
queres é ir para casa mudar de roupa!
—
Achas bem que eu
esteja de camisa suja?
—
À noite, ninguém
repara. E se alguém reparasse não haveria problema. Podes sempre
comportar-te como se não soubesses que tens aí uma nódoa...
—
Falas assim porque a
camisa não é tua! — desabafou Leonardo.
—
Estás na praia. Não
há aqui ninguém para ver se estamos limpos ou sujos.
—
Não me sinto bem...
—
Podes despir-te!
E,
de repente, Leonardo teve vontade de chorar. Não por causa da nódoa
na camisa, como é óbvio, mas apetecia-lhe chorar. Às vezes,
dava-lhe aquilo. Sem motivo aparente, ou por uma banalidade qualquer,
vinham-lhe as lágrimas aos olhos. Ele escondia-as, distraía-as,
enganava-as — tossindo, por exemplo — o que lhe permitia dar a
ideia de tudo não passar de um princípio de constipação. Por
vezes, pensava sobre o que faria no dia seguinte e isso era
suficiente para lhe devolver a serenidade. Porque no dia seguinte ele
nada teria que fazer para além de estar no carro com Norberto, a
olhar para lado nenhum. Outras vezes, a sua comoção era um sinal de
que algo estava para suceder, algo indefinível... Aceitava o que
tinha porque não lhe restavam outras hipóteses. A noção da
realidade comovia-o. A noção pura do que possuía e não possuía.
A sua segurança estava na amizade com Norberto. No quarto onde
residia também não o chateavam. Não se lembrava da mãe e do pai
só tinha uma lembrança vaga de o ver chegar a casa sempre tarde. Um
dia, soube que tinha sido encontrado sem vida. Foi despedir-se dele,
na capela mortuária, onde não havia vivalma, para além de uma tia,
da qual perdera o rasto. À saída do cemitério, encontrou uma
mulher gorda, de rosto pálido, com óculos de fundos de garrafa, que
o fixava intensamente e que lhe sorria de forma desabrida. Leonardo
não a conhecia de parte alguma. Por isso, atravessou a rua, cheio de
pressa, para se livrar daqueles olhos que o fulminavam. Mas a mulher
foi-lhe no encalço, perseguindo-o como uma cadela faminta, por ruas
e becos, corredores de metro, paragens de autocarro, até o obrigar a
ceder e sentar-se num banco do Jardim da Estrela, onde acabaram por
tomar conhecimento amiudado. Tempos depois, soube que a gorda estava
grávida. Discutiram muito. A mulher insistiu sempre que Leonardo era
o pai. Mas ele teve dificuldades em aceitar o facto. E quando a filha
nasceu, andou desaparecido por uns tempos.
Mais
tarde, refez a vida, passando todo o seu tempo no Opel do amigo.
—
Vamos andando —
disse Norberto. — Está a chuviscar.
Meteram-se
os dois no carro e regressaram a Lisboa. Aquela era a única maneira
de tranquilizar Leonardo.
Na
zona da Parede, havia um acidente na marginal. Três carros tinham
chocado, obstruindo a via pública. A vibração do impacto ainda
pairava no ar. Os veículos tinham batido em cadeia, provavelmente
devido a uma travagem brusca do que ia na frente. Não havia sinais
de polícia, nem de ambulância ou de bombeiros. Norberto teve que
parar. Mas não saiu do automóvel.
—
É melhor esperar
que apareça mais alguém... — murmurou, impressionado com a
violência do embate.
Leonardo
estava mudo. De semblante impenetrável. Por causa do acidente e por
causa da nódoa na camisa...
Outros
carros foram parando atrás do de Norberto. Mas ninguém saía para
ver o que se passava. Era como se formassem bicha numa passagem de
nível.
Norberto
decidiu mexer-se. E Leonardo fez o mesmo logo que conseguiu
desprender o cordel que segurava a porta do seu lado.
—
Está ali uma
cabeça! — disse Leonardo, com um arrepio na coluna.
—
Qual cabeça?... —
perguntou Norberto, procurando desdramatizar a situação.
—
Podes crer!! Uma
cabeça loura...
Num
dos automóveis não se via qualquer ocupante. Dava a ideia de o
condutor se ter sumido logo a seguir ao choque. No último veículo,
estava uma mulher imobilizada sobre o volante e no do meio, que tinha
a porta aberta, encontrava-se um homem com a parte superior do corpo
caído sobre a estrada. Era gordo, usava bigode e não se fartava de
falar, por entre golfadas de sangue que lhe saíam da boca, enquanto
o corpo lhe escorregava aos poucos pelo assento:
—
Está combinado,
amanhã apareço com certeza. Pode estar descansado. Já vou, isto
está mesmo a acabar, é só mais um minutinho... Tenha paciência,
não trabalho mais com esse fulano. Nem pense. E ele nem se atreva a
vir falar comigo! Por favor, ó senhores, não me vasculhem a mala.
Deixem-me os bonecos em paz. Podem dizer-me como apareci aqui sem
mais nem menos? Tenho saudades tuas, querida...
Naquele
instante, chegaram duas ambulâncias e três carros da polícia.
Norberto teve um ligeiro susto, mas depressa se recompôs. Os agentes
saíram precipitadamente e afastaram os curiosos do local.
—
Tenho a certeza de
que vi uma cabeça loura — insistia Leonardo, enquanto entrava no
velho Opel, visivelmente perturbado com a cena que acabara de
presenciar.
—
Não temos cigarros
— disse Norberto, passados cerca de vinte minutos, quando a via foi
finalmente desimpedida.
5
No
dia seguinte, ficaram sem gasolina na rua do Conde Redondo. Mas
Norberto aproveitou a descida e não deixou que o carro parasse.
Antes que o veículo perdesse a embalagem, fê-lo subir o passeio e
travou a curta distância da parede, poucos metros antes de uma
estação de combustível. Por pouco não esmagou um homem alto, com
cerca de quarenta anos e cara de poucos amigos. O homem continuou o
seu caminho, mas olhava para trás com insistência, com um ar cada
vez mais ameaçador.
—
Aquela cara não me
é estranha... — disse Leonardo.
Nesse
preciso momento, ouviu-se um forte estrondo na parte traseira do
veículo. O homem com cara de poucos amigos tinha atirado uma pedra
que bateu contra o automóvel.
Norberto
saiu do carro e foi verificar se havia alguma amolgadela na
carroçaria. O carro já tinha a sua idade, mais mossa menos mossa.
Entretanto,
o homem prosseguia a subida da rua do Conde Redondo, em corrida
acelerada, denotando uma frescura física invulgar para a sua idade.
De vez em quando, voltava-se, dava um berro que se ouvia em toda a
zona e desferia um pontapé no ar. Parecia praticante de karaté.
—
Achas que podemos
deixar aqui o carro por uns tempos? — perguntou Norberto a
Leonardo, logo que voltaram a ocupar os seus assentos.
—
Vendo bem as coisas,
passamos a vida sentados num automóvel — disse Leonardo. — Como
nós, só os taxistas. A diferença é que não temos clientes. Mas
andamos sempre para um lado e para o outro. Não fazemos outra coisa.
—
Isso depende do
ponto de vista — respondeu Norberto. — Julgo que fazemos
bastante. Por acaso, neste momento, sinto-me bastante cansado.
—
Sabes que a nódoa
que ontem me apareceu na camisa era de alcatrão?... É uma nódoa
lixada de tirar.
—
Aquele tipo que
atirou a pedra fazia-me lembrar um fulano que uma vez vi em casa de
um vizinho meu...
Leonardo
argumentou que os taxistas tinham uma vida tramada porque nunca
sabiam quem metiam no carro. Hoje podia ser um jornalista, amanhã um
professor, agora um traficante, logo uma beata. Os taxistas não
tinham liberdade. Só iam onde as pessoas queriam que fossem. Estavam
sempre condicionados. O que já não acontecia no seu caso. Porque
eles podiam ir a todo o lado, desde que tivessem gasolina para isso.
E podiam sempre dizer o que lhes apetecia. Ou não dizer coisa
alguma...
—
O pior é quando os
degolam ou abatem a tiro — afirmou Leonardo.
—
Também nos pode
acontecer o mesmo – replicou Norberto. — Imagina que aquele
fulano do karaté nos enfrentava com uma pistola em vez de nos atirar
uma pedra.
—
É sempre um risco.
De
repente, Norberto lembrou-se de onde o conhecia. O fulano estivera
uns meses a trabalhar como carteiro na sua zona. Mas ouvira-se dizer
que fora despedido porque não entregava a maioria das cartas aos
destinatários. Aliviava a carga, vazando sobrescritos, encomendas e
avisos para os caixotes de lixo.
Na
opinião de Leonardo, os carteiros ainda estavam em pior situação
do que os taxistas. Porque além de terem que fazer o que lhes
mandavam, viam-se obrigados a andar a pé.
—
De qualquer maneira,
o tipo não tinha nada que nos apedrejar — disse.
Nesse
instante, uma cabeça entrou pela janela do carro do lado de Norberto
e este verificou que o karateca estava de volta! Ficou incapaz de
falar. O regresso do indivíduo alterava a leitura que inicialmente
fizera da situação. Era como se a pedra, afinal, não tivesse sido
atirada contra o seu carro. Porque o homem podia ter voltado com a
intenção de pedir desculpa. Ou para o agredir com outra pedra,
desta vez directamente na cabeça.
—
Algum de vocês tem
aí um cigarro? — perguntou o karateca.
Norberto
e Leonardo permaneceram uns segundos em silêncio, tentando avaliar a
situação. Se dissessem que não, podiam provocar a ira do fulano e
apanhar com outra pedra. Se respondessem que sim, estariam a ceder
demasiado perante alguém que ainda há poucos minutos os tentara
agredir.
Para
ganhar tempo, Leonardo pôs-se a procurar nos bolsos. E depois
verificou no porta-luvas.
Norberto
achou que era mais seguro não ficar onde estava. Saiu do carro e
encostou-se ao lado exterior da porta, enquanto o karateca denotava
cada vez mais inquietação.
Quando
Leonardo disse que não havia cigarros, Norberto meteu a mão por
dentro do blusão e puxou um do bolso da camisa. Em movimentos
lentos, partiu-o ao meio, deu uma parte ao karateca, meteu o outro
pedaço entre os lábios e puxou do isqueiro. Ficaram os dois a
fumar, olhando um para o outro. Leonardo tinha saído do carro, mas
evitara aproximar-se para não interromper os acontecimentos. Ao
reparar, contudo, que Norberto e o karateca se limitavam a fumar, sem
trocarem palavra, contornou o veículo e foi juntar-se a eles.
6
Ao
fim de uns bons dez minutos, o karateca disse que se chamava Rui e
convidou-os para uma festa em casa de uns amigos.
—
É aqui mesmo na rua
de S. Bento — adiantou Rui. — Juntamo-nos e tomamos uns copos...
Norberto
respondeu que tinha umas coisas a fazer, mas que ia ver se conseguia
dar lá um salto.
—
Se quiserem, vamos
agora — insistiu Rui.
Leonardo
e Norberto afastaram-se uns metros e puseram-se a conferenciar, em
voz baixa.
—
Não estou a
perceber este gajo... — disse Norberto.
—
Podemos sempre ir
ver se aquilo dá alguma coisa — respondeu Leonardo.
—
O tipo é
estranho...
—
O que interessa é o
pessoal que vai aparecer por lá. Pode ser uma oportunidade para
conhecermos alguém...
Responderam
que sim, que iriam, mas não se podiam demorar. Iam só dar uma vista
de olhos pelo ambiente e depois se veria.
Fecharam
o carro e partiram os três a pé para a rua de S. Bento. Entretanto,
o telemóvel de Rui tocou e ele deixou-se atrasar uns metros para
falar à vontade. Mal tinha desligado o aparelho, nova chamada. Desta
vez, até deu uns saltinhos para trás e abrigou-se numa porta
enquanto falava.
—
Não se consegue
ouvir uma palavra do que ele diz — comentou Leonardo para Norberto,
quando ambos optaram por fazer um compasso de espera. — Com o
barulho da rua, não percebo como consegue falar. Até dá a ideia de
que não está ninguém do outro lado.
—
O fulano mexe comigo
— disse Norberto.
Quando
voltou para junto dos outros dois, Rui comentou que já estavam mais
de trinta pessoas na festa.
—
Vai ser divertido —
acrescentou.
Chegados
à rua de S. Bento, bateram na porta errada. Uma velha corcunda
informou-os de que ali não havia qualquer festa. Rui tinha-se
enganado na casa. À segunda, acertaram.
O
apartamento estava a abarrotar de gente que bebia e conversava por
tudo quanto era canto. A música fazia estremecer as paredes da casa.
Em poucos segundos, Rui foi entrando, furando, contornando, até
desaparecer por entre o fumo e a confusão de corpos.
Norberto
e Leonardo preferiram deixar-se ficar na zona da porta de saída,
enquanto estudavam o ambiente. Caso houvesse necessidade, não teriam
quaisquer dificuldades em escapar. Nunca se sabia o que podia
acontecer numa festa do género. Foram buscar duas cervejas e
encostaram-se à parede de um dos cantos de entrada. A menos de um
metro à direita de Leonardo, estava um rapaz sentado no chão e no
seu colo uma rapariga com a pele em cima do osso entretinha-se a
chupar-lhe o pescoço. Apertava-o e puxava-o para si, saltando de
excitação sobre as pernas dele.
Mesmo
à frente de Norberto, um fulano tossia convulsivamente. Depois,
apareceu outro, que o abraçou por trás e se pôs a fazer movimentos
eróticos de encontro às suas nádegas.
—
Não me forces! —
disse o homem que tossia, visivelmente aborrecido.
Muitos
dos presentes dançavam ou pretendiam fazê-lo. Mantinham-se
agarrados uns aos outros como se receassem que a casa desabasse a
qualquer momento.
Uma
rapariga mestiça aproximou-se de Leonardo e perguntou-lhe ao ouvido,
em altos berros, se ele queria ir dar uma volta com ela.
Leonardo
hesitou na resposta. Não queria deixar Norberto sozinho. E também
não conhecia a rapariga nem adivinhava as suas intenções. Tinha
uma noção de perigo que, geralmente, o fazia recuar em momentos
dúbios. Podia haver mais alguém envolvido no esquema e ele ser
apanhado desprevenido. Tudo dependia de vários factores. Onde iriam
dar uma volta? Por quanto tempo? A pé ou de carro?...
—
Tens número de
telefone? — perguntou Leonardo. Ela não percebeu e ele repetiu a
pergunta.
—
Vai-te lixar! —
foi a resposta dela, enquanto lhe tirava a cerveja da mão, pondo-se
imediatamente a bebê-la e agarrando-se a um duro que cirandava
perdido por ali.
A
confusão alastrava no apartamento, à medida que iam chegando mais
pessoas. Viam-se portas a abrir e fechar a todo o instante e gente
que procurava recantos mais pacatos.
De
súbito, um homem chamou a atenção dos presentes porque se começou
a despir enquanto dançava, provocando um coro de aplausos à sua
volta.
O
entusiasmo cresceu quando ele empunhou no ar uma faca enorme. Brandia
a lâmina com uma agilidade verdadeiramente felina diante dos rostos
estonteados que o rodeavam. E imitava sons animalescos, ao ritmo da
música que o sacudia.
—
Corta! Corta! —
gritavam algumas vozes em uníssono.
—
Mata-me!, mata-me!,
por favor — ouviu-se uma jovem suplicar. — Dá cabo de mim! —
insistia ela elevando a voz acima da trepidação da música. — Não
tenhas piedade!
O
homem não ligou. Segurou o cabo da faca com as duas mãos, apontando
a lâmina para a frente e estendendo os braços à altura do peito.
A
dado momento, um dos rapazes que estava mais perto do bailarino e que
vivia a cena com mais agitação foi empurrado por alguém que tinha
sido empurrado, por sua vez, por alguém atrás dele, acabando o da
frente por ser atingido num olho pelo bico da faca.
Ouviu-se
um grito e logo a seguir gerou-se o caos, com várias pessoas ao
mesmo tempo a tentar socorrer a vítima.
Alguns
que não viram o que tinha acontecido e não perceberam o que se
passava puseram-se a gritar e a tentar alcançar a porta de saída,
como se fugissem de um incêndio.
—
Tenham calma! —
ouvia-se dizer. Mas a histeria era cada vez maior.
No
meio de todo o barulho e precipitação, Norberto e Leonardo
aproveitaram para desaparecer.
Chegados
ao exterior, Norberto apressou-se a dizer que não se sentia bem...
—
Será que a cerveja
te caiu mal? — perguntou Leonardo.
—
Não sei... —
respondeu Norberto. — Penso que é do coração. Estou com
palpitações.
7
Naquela
tarde, andaram a pé, porque o carro não tinha combustível.
—
Caminhar faz bem ao
coração, às pernas, à cabeça — disse Leonardo.
—
Não me falta muito
e estou com os pés para a cova... — resmungou Norberto.
Depois
de andarem uns metros em silêncio, Leonardo disse que não valia a
pena irem a festas porque estas eram sempre a mesma coisa.
—
É bebida e confusão
a mais — disse.
—
Pois... —
acrescentou Norberto como se o assunto lhe passasse à margem.
—
E quando se conhece
alguém com interesse vem-se a saber depois que a verdade é outra —
respondeu Leonardo. — Em público, as pessoas nunca mostram a sua
verdadeira personalidade. Há muito artificialismo....
—
Não é só nas
festas que há artificialismo — sublinhou Norberto. — É sempre.
Em todo o lado, a toda a hora. Mas tem que ser assim mesmo, já
reparaste? Seria uma tragédia se as pessoas fossem totalmente
sinceras umas com as outras. O mundo enlouqueceria. Ninguém
suportaria a verdade absoluta. O teatro, o jogo, a ficção são
essenciais para a sobrevivência, para o desanuviamento, para a
descontracção. É preciso não entrar em paranóia...
Leonardo
mudou o tom da conversa, dizendo que à noite podiam ir até à
Caparica, mas o amigo lembrou-lhe que não tinham dinheiro para a
gasolina.
—
Há já semanas que
ando a trabalhar na invenção de um motor a água — acrescentou
Norberto. — Talvez um dia possamos ir por essa Europa fora, até ao
fim do mapa. Mas uma coisa é imaginá-lo, outra construí-lo...
—
Se não desistires,
podes vir a ficar rico.
—
O problema são as
multinacionais da indústria automóvel. Sempre ouvi dizer que fazem
desaparecer quem lhes ameaça o negócio. De qualquer forma, se eu
construísse um motor a água, não seria o primeiro...
Mas
Norberto preferia ficar pela teoria. O seu interesse estava em
imaginar peças, superar dificuldades, sentir que estava tudo perdido
e de repente encontrar uma saída, nem que fosse ilusória. Para ele,
depois de vencido esse desafio, não havia mais nada a demonstrar. O
seu cérebro libertava-se e regressava às viagens pelo espaço
cósmico, que eram bastante mais divertidas do que as viagens pelas
ruas de Lisboa.
—
Por isso, é que
nunca vou ser ninguém na vida — explicava. Não passo à prática
nada do que penso.
Norberto
não se interessava por enriquecer nem nada que se parecesse. Aliás,
bastava falarem-lhe em dinheiro para o levarem a desistir de tudo,
imediatamente. O dinheiro, a seu ver, era sinal de complicações.
Quem o tinha via-se obrigado a investir constantemente para o
rentabilizar e só de pensar nisso Norberto perdia o sono. Preferia
não possuir coisa alguma a ter que viver em semelhantes condições.
Se fosse rico, estaria sempre com medo de perder, fracassar, não
corresponder ao que esperavam dele. Antes ser pobre toda a vida do
que ter que passar dia após dia em pânico por causa de uma empresa
que não dá lucro, por causa de acções na bolsa, holdings, OPAs...
Desde
criança que Norberto desistia das coisas. Desde a escola. Fora
sempre mau aluno porque desistia. E desistia porque receava desiludir
os outros.
Um
dia, chegou a casa e informou a mãe que não voltaria a pôr os pés
na escola! Esta era uma ilusão, não ensinava o que realmente
interessava, era uma perda de tempo.
A
mãe tentou demovê-lo, mas Norberto não lhe deu hipóteses.
—
Não estou
interessado — defendeu. — É um martírio.
Norberto
só queria viver em paz. Não chateava ninguém e esperava que lhe
fizessem o mesmo. Se o conseguisse, seria feliz. Por isso, nem punha
a hipótese de casar e ter filhos. Não estava disposto a lidar com
tamanhas confusões.
—
Assim , vais ser
sempre um desadaptado — dizia-lhe a mãe.
—
Antes isso do que
outras coisas...
Quando
a conversa chegava a este ponto, ela calava-se. Aquele “outras
coisas” tinha um alcance suficientemente vago para a desencorajar
de novos argumentos. De qualquer modo, ficava pensativa. E remoía
consigo mesma ideias sobre o filho e sobre a sua natureza. Norberto
era o oposto de tudo o que ambicionara para ele. A sua vida era uma
divagação constante.
8
A
única vez em que Norberto se candidatara a um emprego regular não
tivera sucesso. Por influência de um velho conhecido da mãe,
marcaram-lhe uma entrevista com o gerente de uma empresa de
equipamento electrónico.
Durante
a semana que antecedeu a entrevista, Norberto mal pregou olho. Pensou
mil vezes em desistir, contudo a mãe insistiu mil vezes que ele não
o fizesse.
Norberto
chegou a telefonar para anular a marcação, mas mudou de ideias e
desligou o aparelho enquanto a recepcionista estabelecia a ligação
para o gabinete do gerente. Só queria que o homem adoecesse, para
não ter que o enfrentar. O seu maior desejo era que alguma coisa o
impedisse de aparecer no dia e na hora combinados, mas ficar de
consciência tranquila, ao mesmo tempo, por ter feito o seu melhor
para arranjar um emprego.
Já
se via a trabalhar, rodeado de electrónicas, entre fios e cabos de
todo o género e feitio, sem ser capaz de acertar numa única tarefa,
por mais simples que fosse.
“Equipamento
electrónico..., equipamento electrónico...”, pensava. Não tinha
a certeza de saber exactamente de que se tratava. O termo
“electrónico...” dizia-lhe pouco. Tinha dúvidas sobre a
diferença entre “electrónico” e “eléctrico”.
—
Olha
que é capaz de ser um bom emprego — argumentava Leonardo. — Não
te custa nada ir à entrevista, nem que seja para saberes mais
pormenores.
—
Não sei o que
hei-de dizer ao indivíduo. Não tenho qualquer experiência
profissional. Não consigo imaginar o que é estar sentado diante de
um gerente.
—
Uma
vez tem que ser a primeira. Não podes recusar as oportunidades que
te aparecem.
—
Podias
ir tu no meu lugar...
—
Mas o pedido foi
feito em teu nome. Não dá para misturar as coisas. Tens que confiar
em ti.
Em
casa, à noite, a mãe esperava que o filho chegasse e incentivava-o,
dizendo que ele sempre fora inteligente e desembaraçado. Só
precisava de não ter medo. Toda a gente que se candidatava a um
primeiro emprego passava pelo mesmo.
—
Só que nem toda a
gente se candidata ao primeiro emprego com a minha idade! —
respondia Norberto. — Se calhar, nesse dia, vão estar lá outros
candidatos bastante mais novos do que eu e com mais bagagem. Com que
cara vou sentar-me ao lado deles? Que vão pensar de mim? Não tenho
hipóteses.
—
Cá
estás tu com as tuas inseguranças — dizia a mãe. — Quer
queiras quer não, tens que ir. Porque eu não vou durar sempre. E
não podes continuar nesta situação. Estás a perder o melhor tempo
da tua vida...
Norberto
retirava-se para o seu quarto a pensar no que a mãe lhe dizia.
Pensava, mas não evoluía. As ideias rodopiavam-lhe na mente e
conduziam sempre ao mesmo ponto. Ficava horas a olhar para o tecto,
ouvindo o que acontecia na rua. Gente que passava, que discutia, que
partia garrafas às vezes. Ele não sabia ser como os outros.
Faltava-lhe qualquer coisa que o impedia de se comportar como um
cidadão vulgar. Não era capaz de ir a um restaurante ou a uma
discoteca. Nem sequer se atrevia a passear com uma mulher. Tinha a
sensação de que todos ficariam olhá-los, imaginando o que ele
faria com ela. E mesmo que nada acontecesse, os outros
imaginá-los-iam sempre despidos na cama ou num beco qualquer,
trocando prazer. Era como se realmente fizessem o que não faziam.
Para não correr riscos de ser despido pelos olhares das pessoas,
decidira não ter namorada.
Norberto
via nas paredes a cara do gerente com quem tinha entrevista marcada.
Umas vezes gordo, outras vezes magro, sempre com óculos, bigode e
tez escura. Por fim, deixava de saber exactamente onde se encontrava
e adormecia.
No
dia e hora marcados, Norberto compareceu à entrevista de emprego.
Mandaram-no esperar numa sala durante uns minutos e depois
conduziram-no ao gerente. O homem que tinha à sua frente em nada se
parecia com o que ele imaginara. Era magro, enfezado, pálido e não
tinha óculos nem bigode. Perguntou-lhe apenas o que sabia fazer.
Norberto respondeu-lhe prontamente:
—
Nada! Não sei fazer
nada!
O
gerente coçou o nariz e pôs-se a olhar para as folhas de papel que
tinha à sua frente. Depois, resmungou entredentes que não percebia
como era possível alguém que nada sabia fazer ter o descaramento de
se apresentar a uma entrevista de emprego. Mal acabou de falar,
sacudiu a cabeça e escreveu qualquer coisa no canto de uma das
folhas. Parecia ter-se ausentado da sala, subitamente. Ao fim de dois
ou três minutos, informou, com voz seca, que o candidato estava
admitido para trabalhar no escritório da firma.
Norberto
levantou-se, agradeceu e saiu. Mas não acreditou que tivesse sido
admitido. E nunca chegou a comparecer no local de trabalho.
9
—
Estou cada vez pior
da comichão — disse Leonardo. —Já não sei o que hei-de fazer.
Dizem que é uma alergia, mas tenho a certeza de que não é.
—
Dá-te sempre isso
quando estás muito tempo sem ver a tua filha!... — comentou
Norberto. — Não queres assumir as coisas, mas esta é a realidade.
—
Tem calma... —
limitou-se a comentar Leonardo, como se fazendo eco das palavras do
amigo.
—
Não é proibido
falar do assunto — disse Norberto.
—
Pois não... —
acrescentou Leonardo, enquanto ia dizendo que não tinha certeza de
ser ele o pai!
Norberto
argumentou que Leonardo estava apenas a enganar-se a si mesmo, porque
a criança tinha a sua cara sem tirar nem pôr.
—
Deve ser isso que te
custa mais — disse Norberto. — Depois queixas-te da comichão!
Tens que sentir mesmo comichão... Se fosse eu, também tinha. Não
sei como consegues dormir todas as noites sabendo que tens uma filha
de três anos que só vês raramente. Deves falar nisso. Falar faz-te
bem. Não adianta andares a fingir que a tua filha não existe.
Leonardo
visitava-a duas ou três vezes por ano. Norberto era a única pessoa
que sabia do caso. Já tinham discutido o assunto inúmeras vezes.
Mas Leonardo nem assim mudava de atitude. O problema não era a
filha, a quem se sentia profundamente ligado. O problema era a mãe...
Leonardo
tinha especial aversão a pessoas gordas. A celulite transtornava-o.
As carnes flácidas nauseavam-no. Todo ele mirrava ante um monte de
banhas.
Quando
soube que ia ser pai, Leonardo esteve várias noites sem dormir.
Durante o dia, não falava de outra coisa com Norberto e, à noite,
passava as horas em branco a imaginar como seria a criança.
Aterrorizava-o pensar que ela poderia vir a ser gorda como a mãe. E
o pior era que essa tendência só mais tarde se podia manifestar,
havendo até hipóteses de se revelar só por volta dos quarenta.
Assustava-o o facto de as pessoas serem bonitas aos vinte ou trinta
anos e aos quarenta ou cinquenta engordarem desmesuradamente,
alargarem, aumentarem de peso. Pareciam outros, disformes,
monstruosas, repelentes.
Nos
primeiros meses de gravidez da mulher, discutia muito com ela, mas
ainda frequentou a sua casa, como se considerasse a possibilidade de
manter a relação, ou de vir a formalizá-la. Todavia, logo que a
filha nasceu, passou-lhe uma coisa pela cabeça e desapareceu, não
se lembra para onde.
—
Não gostas da tua
filha? — perguntava-lhe Norberto. — Que é que viste nela? Tem
algum defeito? Olha que mais tarde podes vir a arrepender-te.
As
respostas de Leonardo não eram esclarecedoras. Ficava acabrunhado,
evasivo, hesitante, sinuoso.
Mas
Norberto sabia que a sua atitude de afastamento para com a filha era
uma defesa. O amigo queria apenas minimizar a dor de viver sozinho.
Leonardo sentia-se
feito em tiras por dentro só de pensar que Laura cresceria à margem
da sua vida, sem lhe ligar, ignorando-o, desconhecendo os seus gostos
e tendências. E que ele também não saberia grande coisa sobre ela.
Não veria o seu rosto formar-se entra dia sai dia, não presenciaria
os seus risos e lágrimas, não assistiria aos seus primeiros passos,
não contribuiria para a formação das suas qualidades e defeitos,
não a levaria regularmente à escola... Tanta coisa que perderia,
tantos aspectos que lhe passariam ao lado.
A
ausência da filha era o motivo principal da sua solidão. Um dia que
abandonasse este mundo nada teria para lhe deixar. O mesmo que o pai
lhe legara. De facto, Leonardo nada acrescentara ao que recebera e
passaria a Laura — se passasse — rigorosamente o que lhe havia
caído nas mãos.
Nas
poucas vezes em que ia ver a filha, sentia o cérebro paralisado.
Punha-se a olhar para ela e não era capaz de dizer fosse o que
fosse.
10
Na
óptica de Norberto, a espécie humana era essencialmente
destruidora. Sempre o fora. Desde os primórdios da civilização.
A
guerra entre os humanos era uma marca. Uma expressão cultural. Um
estigma. Um símbolo. Tanto se havia lutado por um poço de lama no
passado como hoje se lutava por um poço de petróleo. Mesmo quando
construíam, as pessoas davam-se ao trabalho de destruir primeiro.
Aliás, muitas vezes destruíam para construir a seguir. E depois de
construir voltavam a destruir... Era um ciclo repetitivo sem saída
possível. A construção fazia-se de uma destruição progressiva e
sistemática.
Em
criança, certa vez, numa ida ao campo, tinha visto cortarem à
machadada o pescoço de uma galinha, só que esta a certa altura se
libertara da mão que a prendia e desatara a correr pela rua fora sem
pescoço, desatinada, perdida, chocando contra as paredes na
tentativa de corrigir o rumo, à semelhança dos carros a pilhas que
mudam de direcção depois de baterem contra um obstáculo.
Esta
visão acompanhou-o ao longo dos anos. Moldou-o, condicionou-o.
Discordava que se degolasse uma galinha para depois a depenar e
atirar para uma panela com água a ferver. E também repudiava o
sofrimento que se infligia às lagostas, cozendo-as vivas. Reprovava
qualquer destruição, qualquer matança.
As
plantas e as pedras eram as maiores vítimas dos humanos. As plantas
eram cortadas, arrancadas, transplantadas. E as pedras eram atiradas,
cortadas, rebentadas...
Norberto
achava mesmo que a verdadeira poesia estava nos vegetais e minerais.
Porque era nestes que residia o mais profundo mistério da linguagem,
que só estava ao alcance da poesia. E eram os vegetais e minerais os
seres que mais sofriam à face da Terra. A meditação era o seu
estado constante.
Destruir
era mudar. E como tudo mudava sempre, tudo estava sempre em
destruição, tudo estava sempre em desestruturação, para renascer
sob outras formas e identidades.
Ele
achava que as coisas deviam permanecer como eram, sem alterações.
Para sobreviverem, não tinham nada que destruir outras. Para
construir, não devia ser necessário deitar abaixo.
Leonardo
discordava e defendia que a lei do Universo era mesmo assim, que não
valia a pena perder tempo a especular sobre impossíveis.
Mas
Norberto revoltava-se precisamente contra essa lei, contra essa
ordem, que fazia as coisas serem como são. Achava que a sua única
alternativa era especular, lutar contra o inverosímil. Ao fazê-lo,
estava a criar uma alternativa, nem que fosse apenas teórica.
—
Só consegues criar
alguma coisa destruindo outra — argumentava Leonardo.
—
Mas ao criar apenas
na teoria, acabo por não destruir na prática! — replicava
Norberto. — Se destruo, é na teoria. Nunca hei-de fazer nada na
vida, nem que seja para evitar destruir o que quer que seja.
Sabia
que a sua posição não tinha seguidores, que era um desadaptado,
que ninguém lhe daria razão. Alguns até o considerariam louco. No
mínimo excêntrico. Por isso, levava a vida que levava...
Leonardo
respondia-lhe falando de sexo. Em seu entender, o sexo era o oposto
da destruição. Porque era o prazer máximo, a libertação
absoluta. O sexo não mudava. Era sempre o mesmo. E, como tal, devia
comandar a vida.
—
O sexo é construção
— defendia. — Quanto mais sexo se faz, mais se cresce e evolui.
—
Quando fazes sexo
também destróis — argumentava Norberto.
De
qualquer modo, o sexo cria vida de forma directa e espontânea. E dá
origem a tanto prazer que acaba por tornar irrelevante tudo o que
possa ser destruído.
Leonardo
era de opinião que o sexo justificava a destruição. O sexo era a
excepção à regra. Tudo o que não fosse sexo era um desvio. Só
havia uma dificuldade, que era a de encontrar alguém com quem se
pudesse fazer sexo decentemente. Quando se estava todos os dias com a
mesma pessoa, a rotina instalava-se e destruía o prazer sexual.
Quando se mudava de parceiro com muita frequência o prazer nem
sempre funcionava porque o desconhecimento do outro era fatal e
impedia uma satisfação maior. Não era capaz de tocar com um dedo
na baleia, mãe da sua filha. A melhor forma de lidar com o
problemado sexo era não se meter com quem quer que fosse.
11
À
noite, voltaram ao Conde Redondo, para ver se o Opel continuava no
lugar. Apesar da idade, era sempre possível aparecer alguém que não
lhe resistisse aos encantos.
O
carro ainda lá se encontrava. Não tinham dinheiro para gasolina,
mas entraram e sentaram-se como de costume.
Leonardo
inclinou-se para a frente e pôs-se a sacudir a cabeça, esfregando-a
com as mãos.
—
Estou a ficar careca
— disse, estendendo a mão para mostrar a Norberto um rolo de
cabelo. — Por este andar, mais dia menos dia fico completamente
liso.
—
Não te cheira a
bebida? — perguntou Norberto, de sobrolho franzido.
—
Só bebemos uma
cerveja na festa... — foi a resposta evasiva de Leonardo.
—
A queda do cabelo e
a comichão têm origem nervosa. Isso é tudo por causa da tua filha.
—
Não estou a achar
graça...
—
Está um cheiro
esquisito aqui dentro... — murmurou Norberto.
—
Queres que eu acenda
a luz?
—
Não é preciso...
—
Deve haver alguma
coisa podre debaixo dos assentos.
—
Não tens que te
envergonhar do que fizeste! Por que não hás-de assumir que
engravidaste uma fulana e que és o pai de uma criança chamada
Laura? Se te meteste com uma baleia, isso é o menos. O que interessa
é que deves assumir as tuas responsabilidades. Meteste-te com uma
baleia como podias ter-te metido com uma trinca-espinhas.
—
Parece-me que está
aqui um cheiro a uísque... — afirmou Leonardo, olhando em todas as
direcções no interior do carro.
—
Só agora é que
notaste?
—
Estou meio
constipado...
—
Assume que tens uma
filha e verás que tudo isso te passa.
—
Não achas melhor
revistarmos o carro?...
—
É verdade que a
baleia te batia?!
A
pergunta soou no ar como um disparo! Leonardo ficou sem perceber o
que se estava a passar. No meio da confusão em que mergulhou o seu
cérebro, só conseguiu perguntar a si mesmo como pôde Norberto ter
sabido que a mulher o agredia. Entre confirmar e negar, preferiu
desdramatizar. Reconheceu que tinha acontecido uma vez, uma única
vez.
—
Também não é
preciso dramatizar — acrescentou, hesitante e visivelmente
enfraquecido de argumentos.
Fora
num domingo de manhã em que ele aparecera em sua casa a fim de estar
uns momentos com Laura. A baleia aparecera arreliada à porta e
dera-lhe um murro na cara. Apanhado de surpresa, Leonardo caíra
estendido a seus pés, ante os olhares da vizinhança e da própria
filha, que desatou a chorar ao vê-lo maltratado daquela forma. Para
evitar um desacato público, sobretudo para que a filha não
presenciasse a continuação da violência, preferira retirar-se sem
esboçar qualquer reacção.
A
partir de então, fazia um sacrifício enorme sempre que ia ver
Laura. Imaginava o que diriam as pessoas que o viam chegar, bater à
porta e esperar. Quantas apostariam que ele voltaria a ser esmurrado?
Quantas ririam dele e o considerariam um cobarde de primeira ordem?
Mas a filha estava em primeiro lugar. Por ela, suportaria tudo. Não
punha a hipótese de deixar de a ver. Nem que fosse apenas uma vez
por década. Nem que fosse agredido da cabeça aos pés até ao resto
dos seus dias.
—
Tenho um plano que
talvez te interesse... — disse Norberto. E ante o mutismo do amigo,
adiantou, por entre gaguejos e rodeios: — Podemos raptar Laura!!
Leonardo
não reagiu. Manteve-se calado. Mas enquanto os segundos iam
devassando a ideia apresentada por Norberto, pôs-se a fazer contas
de cabeça, concluindo que não tinha condições para educar a
filha. Laura não ia passar os seus dias dentro de um carro
enferrujado que se limitava a andar (quando andava...) sem rumo pelas
ruas de Lisboa. Nem ele nem Norberto eram capazes de desempenhar o
papel de mãe...
—
Antes viveres feliz
com a tua filha num carro velho e enferrujado do que seres humilhado
publicamente por uma mulher que te agride sem escrúpulos. Já
imaginaste que um dia a tua filha pode proceder da mesma forma?!
A
observação de Norberto ficou a ecoar na cabeça de Leonardo. Nunca
tinha pensado naquilo. Só de imaginar que no futuro podia ser
agredido pela filha desnorteava-o por completo. Mas raptar Laura
também lhe parecia uma loucura. Não sabia como o faria, nem a que
horas... A filha podia gritar e chamar a atenção da vizinhança...
A polícia podia aparecer no exacto momento do rapto de Laura... Por
entre a precipitação da fuga, ele podia tropeçar em alguma coisa e
estatelar-se no chão com a filha nos braços...
12
Lá
bem no íntimo, Leonardo admitia que a baleia tivera as suas razões
para o agredir. Porque o dever de um pai era estar junto da mulher e
dos filhos, independentemente dos problemas que surgissem. Quem não
suportava gordas não tinha nada que se envolver com elas. As
famílias não deviam desintegrar-se. Por isso, eram famílias. O que
contava era o espírito de sacrifício e a capacidade para gerir
situações difíceis. Se um casal não tinha filhos ainda se
compreendia que optasse pela separação. Mas, se os tinha, a sua
obrigação era criá-los. Tal como não se abandona um cão ou gato,
também não se abandona uma criança!
O
seu procedimento fora incorrecto. Não dera mostras de saber lidar
com a situação que criara. No dia em que a filha nascera, perdera o
Norte e desaparecera. Foi como se tivesse esquecido a pessoa que era.
Tempos
depois, quando veio a si e pretendeu constituir família, já era
tarde. As semanas e os meses tinham passado, o que fazia uma grande
diferença. Além de tudo, Leonardo não contribuía com um centavo
para o sustento de Laura. Era uma situação abominável. Merecia ser
esmurrado todos os dias, a todas as horas, sem contemplações.
Tinha
vergonha de o pensar, mas era verdade: a baleia tinha o costume de
sair de casa, à noite, para se divertir, sem se preocupar com a
filha. Fizesse calor ou frio, Laura ficava fechada na varanda do
apartamento, ao frio, durante horas, até às três ou quatro da
manhã, chorando e gritando que nem um anjo ferido, pedindo socorro
por entre soluços e palavras aflitas que muitas vezes mal se ouviam
por baixo dos rumores da cidade, da ventania, da chuva...
A
baleia não tinha ninguém com quem deixar a filha. Não podia ser
proibida de sair e distrair-se. Não tinha posses para pagar a alguém
que tomasse conta da criança. O único remédio era deixá-la na
varanda entregue a si própria e aos gritos lancinantes, que cortavam
a alma, que tiravam o sono a quem os ouvia, quando as noites eram
serenas.
Mas
quem ouvia os gritos de Laura preferia fingir que não ouvia. Não
avisava a polícia, nem os bombeiros, receando ter a baleia como
inimiga.
Já
a tinham ouvido dizer que ninguém tinha que se meter na sua vida nem
na da filha. Se deixava a filha na varanda era para que os seus
gritos não fossem tão nítidos na noite, para que não fizessem
estremecer as paredes do prédio, para que não incomodasse tanto a
vizinhança, para que a porta do apartamento não saltasse das
dobradiças, para que a criança não cometesse a loucura de se
atirar pelas escadas. Deixava-a na varanda, para que as coisas que
tinha dentro de casa se mantivessem intactas. Laura podia atear fogo
aos móveis, ou a um qualquer papel velho. Podia desarrumar os
quartos, virar tudo de pernas para o ar. Na varanda, ao menos, não
fazia estragos. Era uma solução limpa e cómoda.
Quando
voltava das noitadas nos bares e discotecas, a baleia encontrava a
filha transida de frio e pânico, quase sem noção do que acontecia,
perdida no espaço da noite sem fim, rouca de tanto gritar. A mãe
abraçava-a e dizia: “Pronto, Laura, não é nada, já passou, não
sejas tonta, os passarinhos também ficam ao ar livre de noite e
ninguém lhes faz mal. Com o tempo habituas-te, na varanda estás
segura...”
Ao
ouvir as palavras da mãe, Laura acalmava e esquecia o terror das
horas que passava na varanda. Depois, iam as duas para a cama e, para
se aquecer, Laura enrolava-se na gordura da mãe. Alguns minutos mais
tarde, já dormia que nem um pinto.
Leonardo
nunca dissera a Norberto que Laura costumava ser fechada na varanda,
ao frio e à chuva. Receava que o amigo denunciasse o caso às
autoridades e a internassem em alguma instituição pública. Achava
que uma mãe, por pior que fosse, era sempre preferível a qualquer
outra solução.
—
Estás sempre a
tempo de refazer a família — disse Norberto.
—
Já não dá —
esclareceu Leonardo. — Ela não me aceita em casa. Diz que nem sabe
como foi capaz de se meter comigo, que estava cega, que nunca mais
repetiria o erro. Na sua opinião, sou um mau exemplo para a filha.
Se me deixa vê-la é porque tem pena de mim, porque acha que posso
morrer a qualquer momento e não quer ficar com remorsos. E tem toda
a razão. O meu procedimento não merece outra coisa.
Para
Norberto, porém, tudo era sempre possível de remediar. As pessoas
diziam coisas que nem sempre sentiam. Faziam-no por despeito e
solidão.
Leonardo
não era tão optimista. Por duas vezes, declarara-se arrependido e
chegara a sugerir à mulher que passassem a viver juntos, mas ela nem
o quisera ouvir. Para estar perto da filha, Leonardo até estava
disposto a suportar as humilhações de uma gorda.
—
A situação não é
tão fácil como parece — acrescentou. — Não posso obrigar uma
mulher a viver comigo...
—
Por isso devias
pensar bem na hipótese do rapto. Tens os teus direitos — insistiu
Norberto.
—
O meu erro foi ter
desaparecido na altura em que Laura nasceu. A baleia ficou-me com um
ódio de morte. Esperou por notícias minhas durante meses. Mas eu
estava noutra. A minha preocupação era esquecer que tinha uma
filha. E, às vezes, ainda tento. É um crime maior do que fechá-la
na varanda, à noite, durante horas!...
13
Leonardo
estava sem voz. Transpirava das mãos e do rosto. Ardia. Ao fim de
alguns minutos, conseguiu pronunciar a custo:
—
Evito falar do
assunto como se não me dissesse respeito... Mas quanto mais procuro
afastar o problema, mais a realidade me cai em cima. À medida que
Laura vai crescendo, vou sentindo a situação de outra maneira.
Quando a visito, noto sempre evolução nas suas ideias, nos seus
sentimentos, nas suas capacidades... E percebo que não faço parte
do seu processo de crescimento. Sou um estranho, sinto-me à margem.
É como se um de nós estivesse morto... — Depois de alguma
hesitação e notório embaraço, acrescentou: — O problema da
varanda não é assim tão grave como parece.
E
contou, finalmente, ao amigo a forma como a baleia tratava a filha
nas noites em que saía de casa para cirandar por aqui e por ali.
Depois
de ouvir a descrição minuciosa do amigo, Norberto perguntou:
—
Durante quantas
horas a tua filha fica fechada? Cinco? Três? Seis?!...
Leonardo
não sabia responder com exactidão. Nem queria saber. Mas Norberto
só estava interessado em pormenores. Como se a solução do caso
dependesse da sua gestão criteriosa de alguns pormenores ínfimos.
—
Quantos degraus são
até ao andar onde mora a tua filha? — perguntava Norberto. — É
importante que me respondas. Quantas vezes por semana a baleia fecha
Laura na varanda?
Leonardo
respondeu que na China havia crianças que sofriam muito mais que a
filha dele. Morriam de fome, lentamente, com moscas nos olhos, só
com a pele sobre os ossos, sem ninguém que se interessasse por elas,
amarradas aos berços, por entre os dejectos nos lençóis. E havia
crianças na Europa que eram espancadas pelos pais. Espancadas
regularmente. Por tudo e por nada. Só porque mexiam aqui e acolá,
só porque queriam isto ou aquilo... Não era muito pior ser
espancado por alguém que pouco depois de nos agredir ainda tem o
desplante de dizer que é o amor da nossa vida? Como era possível um
pai ou uma mãe terem coragem de bater numa criança? Terem coragem
de castigá-la? Terem coragem de se zangar com ela? Vendo bem as
coisas, Laura estava em melhor situação que muitas crianças por
esse mundo fora. Só passava algumas horas por semana na varanda da
casa. Tinha frio, é certo. E chorava. Mas, pronto... De qualquer
forma, Leonardo considerava-se responsável pelo que a baleia lhe
fazia.
—
Por que julgas que
já me ofereci para viver com aquela vaca-baleia?! Mas ela não quer,
não me dá uma hipótese, não me pode ver na sua frente. Se eu
vivesse lá em casa, seria diferente. Podes ter a certeza de que
nunca havia de deixar Laura sozinha na varanda. A baleia podia
passear e divertir-se à vontade que não me faria qualquer
diferença.
—
É verdade que na
China há crianças em pior situação que a de Laura — comentou
Norberto. — Mas não podemos conformar-nos com o que acontece à
tua filha. Temos que fazer alguma coisa. Porque é a tua filha que
está em causa. Não podemos ficar de braços cruzados à espera que
um anjo desça do céu para a ajudar. Depois do que acabas de me
contar, a ideia do rapto ainda faz mais sentido. Temos que estudar
bem o caso. Não podemos falhar. Se não queres entregar Laura às
autoridades, é preciso fazer alguma coisa e desaparecer com ela para
o estrangeiro!
Leonardo
estava confuso. Desaparecer para o estrangeiro?!... Como sobreviveria
sem o velho Opel do amigo? Onde arranjaria casa? Como pagaria a
renda? Quem lhe daria emprego? E a polícia, que nos outros países
era muito mais implacável? Apercebia-se agora de que nunca dissera a
verdade toda a Norberto para não ser confrontado com a crueza dos
factos. Quando só ele, Leonardo, estava ao corrente do que se
passava, ao menos, ia arranjando umas desculpas perante si próprio e
as coisas iam andando. Agora, até lhe custava olhar para Norberto.
Embaraçado,
pôs-se a palpar os bolsos. O amigo percebeu que ele procurava
cigarros. Era uma forma de desanuviar a conversa. Norberto também
não os tinha. Já passava da uma da madrugada. No bolso, ambos
encontraram 75$00. Só se achassem um lugar que os vendesse avulso. O
que era improvável àquela hora.
Passaram
dois indivíduos na rua, de mão dada, e Norberto perguntou-lhes se
podiam vender um cigarro. Os homens olharam, sem abrandar o passo, e
não responderam. Foi como se ninguém lhes tivesse dirigido palavra.
Pareciam fazer parte de um filme cuja acção nada tivesse a ver com
o que acontecia à sua volta.
Logo
a seguir passou uma mulher, de saia curta e cabelo louro platinado,
mas quando Norberto ia para lhe falar, Leonardo pediu-lhe:
—
Vê aí no cinzeiro
do carro...
Encontraram
uma beata aproveitável, por entre um montão de cinzas a
transbordar.
Norberto
preparou-se para a reacender, com o maior cuidado, inclinando-se para
a frente, com as mãos em concha à volta da boca.
Ao
ver a dificuldade de Norberto, que disse qualquer coisa imperceptível
enquanto inspirava o fumo, Leonardo ofereceu-se para tentar. O amigo
já ia no terceiro fósforo sem conseguir reacender a beata.
—
Isto já é mais
filtro do que outra coisa — resmungou.
—
Eu consigo... —
disse Leonardo.
Mas
não foi preciso. Norberto acabou por levar a sua avante.
Depois
das primeiras fumaças, passou a beata ao amigo, que a segurou na
ponta dos dedos e inalou o fumo com empenho e concentração. Repetiu
o gesto duas vezes, devolvendo a beata a Norberto...
Decidiram
dormir no carro durante aquela noite, para não sentirem necessidade
de fumar no trajecto para casa. No dia seguinte, comprariam fiado num
dos vários cafés em que tinham confiança com os empregados.
Pagariam quando pudessem.
Leonardo
foi o primeiro a sucumbir ao sono, encostado à porta do veículo que
estava presa por um fio. Antes de fechar os olhos, pensou que se o
fio rebentasse enquanto dormia, a porta abrir-se-ia, mas ele bateria
contra a parede, o que evitaria que se estatelasse no chão. Deste
modo, a sua segurança estava garantida. Podia sossegar descansado.
Norberto
permaneceu acordado durante mais de uma hora. A história de Laura
afligia-o. Era preciso inventariar a zona. Contar as árvores
existentes nas redondezas, estudar as casas vizinhas, memorizar todas
as entradas e saídas do prédio. Fazer uma lista do que não podia
ficar atrás: roupa, alimentação, mapas de estradas...
14
No
dia seguinte, pouco antes das sete horas, Leonardo acordou com o
movimento frenético da rua. Sentia o corpo tolhido e pesado por ter
estado horas na mesma posição. Tinha na boca seca um gosto amargo
de pano encardido. Durante o sono, escorrera-lhe um fio de saliva
pelo queixo, que lhe deixara aquela humidade na manga do blusão
sobre cujo braço deitara a cabeça. Precisava de entrar num café
para lavar os dentes com os dedos. À falta de escova, era uma forma
de aliviar as gengivas.
A
seu lado, Norberto dormia com um vago sorriso nos lábios. Tinha a
cabeça sobre o volante, ligeiramente voltada na sua direcção.
Enquanto observava o amigo e a luminosidade matinal que invadia a
rua, Leonardo ia tentando organizar as ideias sobre aquela
terça-feira, ou quinta-feira, não se recordava, até podia ser
domingo. O entorpecimento do corpo deixava-lhe a mente incapaz de
funcionar. Se alguém avançasse para ele, naquele instante, de
pistola em punho, não esboçaria qualquer gesto de defesa. Só
quando a bala lhe penetrasse no corpo teria a noção de que já era
tarde demais e, por isso, também não valeria a pena qualquer
esforço para evitar o tiro fatal. E perderia Laura para sempre...
Daí a cerca de duas horas, quando os relógios apontassem as nove da
manhã, começaria a arrebitar, a analisar os factos, a utilizar os
músculos do cérebro. Sabia que era assim por regra. Tornava-se
inútil contrariar a lentidão do organismo.
Pelo
canto do olho, notou que havia uma sombra inusitada no banco
traseiro. Dava ideia de serem dois pés cruzados um sobre o outro.
Mas nem se atreveu a verificar o que quer que fosse, tal o
adormecimento em que se encontrava.
Voltou
a fixar a sua atenção no movimento da rua. De uma porta, saiu um
mendigo com vários pedaços de cartão debaixo do braço. Pôs-se a
caminhar num sentido e depois no oposto, como se precisasse de
aquecer o motor. Para variar, flectia as pernas, duas, três, quatro
vezes, preocupando-se em manter o tronco na vertical. Foi andando
assim, até desaparecer nos cinzentos da rua.
Leonardo
lembrou-se de que não tinha cigarros, mas àquela hora da manhã não
costumava sentir necessidade de fumar. Pensou que talvez fosse melhor
ir a casa mudar de roupa. Tocou ligeiramente no braço de Norberto,
mas logo a seguir arrependeu-se e achou que devia deixar o amigo
descansar durante o tempo que lhe apetecesse. Já bastaria, quando
acordasse, dar-se conta de que tinha dormido dentro do automóvel.
De
súbito, Leonardo ouviu ranger o banco de trás! Assustou-se
ligeiramente, mas não foi capaz de articular duas ideias seguidas.
Se o assento rangesse de novo, então voltar-se-ia para saber o que
se passava. Num carro daquela idade era natural que os assentos
cedessem à ferrugem, fazendo barulho sem motivo aparente. Leonardo
também pensou que podia ter sido impressão sua. Ou teria sido até
um ruído no exterior. E, a dado momento, viu diante de si a cabeça
loura com que recentemente se deparara no acidente da marginal de
Cascais. Norberto não o levara a sério na altura, mas o facto de se
recordar da cena, só por si, já queria dizer alguma coisa. Não é
todos os dias que se vê uma cabeça loura por entre os destroços de
um acidente rodoviário.
Só
quando ouviu tossir, de forma nítida e inequívoca, é que Leonardo
teve um sobressalto de lucidez. Quase receou enfrentar a situação.
Mas o instinto obrigou-o a mexer-se. Então, verificou que havia
mesmo dois pés cruzados atrás de si. Duas botas deformadas, gastas,
sebentas de uso. Umas calças, um casaco e uma face por barbear,
enrugada pelo álcool.
Leonardo
pôs-se rapidamente de joelhos no assento e sacudiu o intruso. Em
vão. Repetiu a operação, sem resultados. Aflito, berrou para
Norberto, ao mesmo tempo que também o sacudia:
—
Acorda!
O
amigo, porém, estava completamente vergado pelo sono, conforme se
percebeu quando o seu corpo tombou sobre o lado esquerdo,
enrolando-se mais sobre si mesmo e moldando-se docilmente ao pouco
espaço disponível.
Leonardo
desprendeu o fio que segurava a sua porta e saiu do carro, com
dificuldades, devido à pouca distância a que o veículo se
encontrava da parede.
Na
rua, interpelou alguns transeuntes, contando-lhes que havia um
estranho a dormir no carro do seu amigo, mas não houve quem se
interessasse pelo caso. As pessoas ouviam-no, aceleravam o passo e
afastavam-se com sorrisos desconfiados.
Desorientado,
Leonardo voltou ao automóvel, abriu a porta traseira do lado da rua
e puxou o homem pelos pés, com toda a força de que era capaz. Nessa
altura o intruso despertou, deixou-se cair sentado no chão,
levantou-se logo a seguir, voltou a sentar-se, como se não tivesse
ideia sobre o sítio onde se encontrava, e certamente não tinha.
—
Também tenho
direito!... — exclamou. — Também tenho direito! — repetia sem
cessar. Animado pelo eco das suas próprias palavras, acabou por se
ir levantando, a fim de se fazer ouvir melhor por quem passava na
rua. Parecia o pregador de um credo a clamar por verdades que pouco
interessavam as massas.
Com
os berros, Norberto acordou, saiu do carro, visivelmente atordoado, e
perguntou se tinha acontecido alguma coisa...
Leonardo
não soube explicar-lhe. Estava confuso com a situação e receava
que um eventual comentário seu viesse a piorá-la. Não queria ser
acusado de agressão ou de qualquer outro acto menos correcto.
O
vagabundo que tinha sido puxado para fora do automóvel é que
continuava agarrado ao seu único argumento, dizendo que “também
tinha direito!”
O
que menos interessava a Norberto e Leonardo era que as atenções
recaíssem sobre eles. Se a polícia aparecesse e lhes mandasse
retirar dali o carro, não tinham como fazê-lo. Por isso, o melhor
era afastarem-se, depressa, sem dar nas vistas...
15
Perto
dos Restauradores, Norberto sentou-se no degrau de uma porta e disse
que estava com palpitações!
—
A sério —
acrescentou.
Quando
o amigo se aproximou para ver o que se passava, agarrou-lhe a mão e
forçou-o a pô-la sobre o peito. Leonardo não sentiu nada de
especial.
Mais
agitado do que nunca, porém, Norberto pôs-se a andar no passeio, de
boca aberta e rosto transtornado. Dizia que estava com falta de ar.
Respira!
— sugeria Leonardo, obviamente incomodado com a situação e não
sabendo o que fazer. — Respira! — insistia. — O que tens a
fazer é respirar..., Isso passa-te!
Depois,
pensou que a cena com o vagabundo no Opel podia ter influenciado
negativamente o amigo e desatou a tranquilizá-lo, afirmando que dali
a poucas horas tudo voltaria ao normal.
—
O pior que pode
acontecer é seres multado — disse. — Ninguém vai acreditar
naquele tipo. Toda a gente viu que tinha um parafuso a menos.
Mas
Norberto nem por isso dava sinais de acalmar.
—
Não é o carro, é
o coração! — esclareceu com ar aflito. — O coração vai-me
parar!
—
Tens a certeza? —
perguntou Leonardo.
—
Não...
—
Então não faças a
coisa preta. Queres que chame uma ambulância?
—
Espera...
Norberto
voltou a sentar-se, desta vez na beira do passeio, deixando cair a
cabeça sobre os joelhos.
—
Isso é dos nervos —
disse Leonardo. E ante a mudez do amigo, acrescentou: — Estás em
excelente forma para executar o plano de rapto da minha filha! Já
estou a ver-te ao volante daquela coisa ferrugenta, sempre a olhar
para o relógio e a refilar enquanto eu ando às apalpadelas em volta
da casa sem atinar com a forma de pegar em Laura e fugir!
—
Tens é medo da
baleia! — replicou Norberto, reagindo à provocação do amigo.
—
Não lhe chames
baleia! — pediu Leonardo, de forma abrupta.
—
Mas é o que ela é!!
— argumentou Norberto, parecendo definitivamente esquecido das
palpitações no coração. — Sempre lhe chamaste baleia. Para te
dizer a verdade, nem sei o verdadeiro nome dela.
—
Já te sentes
melhor?
—
Se calhar, preferias
que eu morresse...
Entretanto,
Leonardo sentou-se ao lado de Norberto, deixando-se ficar silencioso,
enquanto observava o trânsito da avenida.
—
Sabe-se lá quantas
pessoas já andaram por cima deste passeio — comentou Norberto. —
Se compreendêssemos a linguagem das pedras, podíamos vir a saber
muita coisa. Quando tenho palpitações, penso sempre que o meu fim
está a chegar. E imagino logo como será estar sepultado, com terra
e pedras por cima dos olhos, do peito, das pernas, do corpo todo. É
o repouso absoluto, de qualquer forma. Mesmo assim, deve ser melhor
do que ter uma vida monótona, chata, rotineira.
Leonardo
quebrou o silêncio e disse que Norberto tinha palpitações porque
fazia tudo para que assim fosse. No fundo, era o que ele queria. Era
uma questão psicológica. Pensava demasiado nas coisas, em muitas
coisas ao mesmo tempo, o que o deixava necessariamente tenso. Se
continuasse por aquele caminho, mais dia menos dia, acontecer-lhe-ia
alguma.
—
Como queres que eu
me controle? — perguntou Norberto. — Cada um é como é. Tu
também andas com um problema de comichão...
Leonardo
alegou que tinha um motivo bem concreto para a sua comichão,
conforme Norberto sabia...
—
Estás simplesmente
a querer desviar as atenções do teu caso — acrescentou. —
Agora, já pareces melhor, mas não te esqueças de que há cinco
minutos atrás estavas aí aos pulos a queixar-te de palpitações.
Norberto
disse que ia dar uma volta para descontrair e que entretanto
aproveitaria para ir a casa desenrascar algum dinheiro para a
gasolina.
16
Cerca
de duas horas mais tarde, Norberto apareceu na rua da Esperança, ao
volante, junto à porta da casa de Leonardo. Estacionou do lado
contrário, em cima do passeio, buzinou três vezes e esperou. Ao fim
de uns minutos, buzinou de novo. Leonardo apareceu um bocado depois,
vestido de fato e gravata:
—
Vou casar-me!, —
disse, tentando justificar a sua aparência fora do habitual.
Norberto
respondeu-lhe com uma gargalhada.
—
Não penses que é
brincadeira — replicou Leonardo.
—
Espero que me
apresentes a felizarda...
—
A minha ideia é
fazer circular a notícia de que vou casar, para ver se a baleia, com
ciúmes, decide aceitar-me...
Norberto
não emitiu som.
—
Não é tão difícil
assim fazer-lhe chegar a notícia...
O
motor do carro foi abaixo duas vezes e duas vezes Norberto o pôs a
funcionar, sem esconder um ar irritado. À segunda falha, a meio da
avenida D. Carlos I, fez um gesto menos conveniente ao condutor do
veículo que vinha atrás e que tinha desatado a buzinar. Logo a
seguir, inverteu a marcha, acelerando e chiando os pneus na direcção
da 24 de Julho.
—
Vamos para o Chiado
— pediu Leonardo. Preciso de ir lá ver umas coisas...
—
Deves pensar bem
nessa cena do teu casamento fictício — advertiu Norberto. — Olha
que a baleia pode reagir de forma imprevista e estragar-te o arranjo
em três tempos.
Mas
Leonardo achava que era preferível lançar o isco, sacrificando a
sua própria vida, do que provocar-lhe a ira com o rapto de Laura.
Nesta segunda hipótese, arriscavam-se a tê-la à perna para o resto
dos seus dias, qualquer que fosse o país para onde escapassem.
Teriam que andar sempre em fuga e essa ideia aterrorizava-o.
—
Ela é capaz de
fazer a cabeça doida a qualquer polícia do mundo! — disse
Leonardo.
Para
Norberto, era demasiado perigoso atiçar o ciúme da baleia. Porque
nunca se sabia como o animal poderia reagir. Se calhar, de forma
bastante mais agressiva do que em caso de rapto da filha.
—
Mas eu é que a
conheço — defendia Leonardo. — Não imaginas do que ela é
capaz...
Estacionaram
num espaço apertado perto do Camões e ficaram ainda a falar junto
do automóvel. Norberto considerava que o amigo estava a ir longe de
mais ao fazer crer que ia casar.
—
Mas tu é que
sabes... — comentou entredentes.
—
Hoje é um dia
especial... — disse Leonardo, como se ninguém estivesse ali para o
ouvir.
Seguiram
na direcção do Chiado e, ao passarem na Livraria Bertrand, pararam,
pondo-se a olhar a montra.
—
Talvez não fosse má
ideia oferecer um romance de amor à baleia — acrescentou Leonardo.
— Para lhe aplacar a ira quando ela souber que vou casar!
Norberto
defendeu que, actualmente, já não havia romances de amor. Leonardo
contrapôs que todos os romances eram de amor. Só era preciso lê-los
com o olhar acertado. Na opinião do amigo, contudo, a sociedade
sobrevivia do ódio, por isso se compreendia que ninguém se desse ao
trabalho de escrever sobre o amor.
—
Estava a pensar n’
“O Fim da Aventura” de Graham Greene... — exclamou Leonardo.
—
Sendo para quem é,
talvez fosse mais aconselhável “O Curral das Bestas” de Magnus
Mills! — sugeriu Norberto.
—
Eça de Queiroz
também pode ser uma solução...
—
Julgo que não vais
lá com romances de amor que já fizeram a sua época.
—
Podemos entrar e ver
o que há...
—
Prefiro ficar cá
fora à tua espera.
—
Vou lá dentro dar
uma vista de olhos...
Leonardo
pôs-se a circular por entre as mesas e estantes de livros,
espreitando pelo canto do olho, a ver se alguém lhe dava atenção.
Folheou “Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde” de Mário de
Carvalho, mais ao lado viu “O Suplente” de Rui Zink, “O Vale da
Paixão” de Lídia Jorge, “Contos Outra Vez” de Luísa Costa
Gomes, “Arkansas” de David Leavitt, Percorreu com os olhos as
novidades, espreitou as prateleiras de baixo, depois as de cima, foi
ver a sala contígua, a seguir a outra, viu passar um indivíduo
alto, de óculos, que tinha o ar abstracto de ser o responsável pelo
estabelecimento... Pensou que da próxima vez que o visse por perto
lhe perguntaria se tinham romances de amor de autores contemporâneos!
Mas sempre que Leonardo se preparava para o interromper, aparecia
alguém que se intrometia, que perguntava, que pedia alguma coisa,
fazendo com que ele perdesse a coragem de expor o seu assunto.
Era
assim desde que nascera. Havia sempre alguém que lhe passava à
frente nos instantes decisivos. O que fazia com que Leonardo perdesse
oportunidades atrás umas das outras. A única excepção fora o dia
em que a gorda se metera com ele. Ninguém se interpusera no banco em
que ambos se sentaram no Jardim da Estrela.
Antes
de abandonar o estabelecimento, passou as mãos pelo “Até ao Fim”
de Vergílio Ferreira, mas não tomou qualquer decisão. Quanto mais
livros via, menos esclarecido ficava. Kafka não, Capote não, Borges
não. A baleia podia não alinhar. A sua ideia de lhe oferecer um
romance de amor corria o risco de ser mal entendida.
17
—
Vou telefonar à
baleia e combinar um encontro — disse Leonardo, logo que se voltou
a juntar a Norberto. — Quando ela me vir assim vestido vai ficar
desatinada. E Laura, se calhar, nem me vai conhecer...
Norberto
reparou que Leonardo já tinha na mão uma moeda e que procurava com
os olhos um telefone público. Viu-o afastar-se, pegar no
auscultador, esperar uns segundos e depois pôr-se a gesticular, como
era seu hábito. Falou durante mais de dois minutos. E quando
regressou para junto de Norberto, vinha radiante da vida.
—
Encontro marcado no
Príncipe Real — exclamou quase eufórico. — Dentro de uma hora.
Foi ela que sugeriu a zona. Disse que tinha umas coisas a fazer aqui
perto e não levantou problemas.
Enquanto
não chegava a hora combinada, puseram-se os dois às voltas pela
zona. Ao passarem por uma ourivesaria, Leonardo fez questão de
entrar. Norberto foi atrás dele, com as mãos nos bolsos. Dentro da
loja, pôs-se a olhar para as paredes, enquanto Leonardo se debruçava
sobre um dos expositores a fim de apreciar melhor as preciosidades.
Há
anos que não entrava num estabelecimento do género. Tantos fios
brilhantes faziam-lhe confusão. Pedras, anéis, brincos, relógios.
E os preços astronómicos. A sua ideia era ver, apenas. Ver, passar
ao lado... Para não sentir o peso dos factos. Naquele dia, contudo,
houve qualquer coisa que o empurrou no sentido contrário, que lhe
disse “entra” e ele entrou. Obedeceu à ordem secreta, sem se
preocupar em identificá-la.
A
certa altura, Leonardo viu o seu reflexo no vidro interior de uma das
montras e teve a impressão de ser outra pessoa. Voltou a olhar e
convenceu-se, realmente, de que o homem à sua frente não era ele. O
fato que trazia vestido, e que raramente usava, era essencial para o
iludir. Procurou afastar-se de Norberto para que não percebessem que
eram amigos. Era mais fácil agir sozinho.
Ao
fim de dez minutos, a sombra minúscula da empregada por detrás de
um dos balcões ainda não tinha dado sinal de vida. Leonardo
sentia-se mais confiante do que nunca.
Passando
junto a um expositor vertical, viu um colar de ouro que lhe pareceu
ideal para oferecer à baleia. Muito mais convincente do que um
romance de amor. Deteve-se por uns instantes e pressionou a
fechadura. O vidro cedeu, entreabriu-se, mas Leonardo pensou que era
mais seguro verificar se havia câmaras de vídeo instaladas na loja.
Deu
dois passos atrás e foi observar outra vitrina. Reparou que Norberto
já tinha desaparecido, o que lhe redobrou a confiança.
—
Deseja alguma coisa?
— perguntou de repente a sombra recurvada por detrás do balcão.
—
Estou só a ver...
A
intenção de Leonardo era ficar por ali às voltas durante algum
tempo, pedir para observar algumas peças, escolher uma delas e dizer
à empregada que a reservasse durante uns breves momentos, tempo
durante o qual ele se ausentaria para ir buscar dinheiro. Entretanto,
a caminho da saída, meteria a mão no expositor vertical que deixara
entreaberto e apoderar-se-ia do colar que considerava perfeito para
oferecer à baleia. Faltaria a embalagem, é certo, o papel de oferta
e o laço, mas ele pensou que ao dar-lhe o presente despojado de
qualquer artifício estaria a realçar a pureza do seu gesto, o que
poderia contribuir para marcar pontos junto da baleia, que era avessa
a situações convencionais.
O
seu esquema só não resultou porque nunca conseguiu voltar a dirigir
palavra à empregada da ourivesaria. Ou ela desaparecia de trás do
balcão, ou quando se tornava visível, Leonardo não tinha coragem
de dizer o que queria. Esteve assim durante mais de dez minutos,
disfarçando o embaraço, hesitando, gaguejando e logo a seguir
tossindo para que não se notasse o seu estado de espírito. Tentava
recuperar a confiança, mas sem êxito. Cada segundo de dúvida
deixava-o mais e mais enterrado no descampado de areia movediça em
que a loja se tornara.
Procurou
Norberto com os olhos. Viu apenas vazio e reflexos de montras.
Naquela ocasião, o amigo seria fundamental para o salvar. Leonardo
já nem tinha coragem para pensar um segundo que fosse no colar que
pretendia oferecer à baleia. Só uma ideia o animava: desaparecer.
Contudo, não sabia por onde. Nem atinava com a porta de saída.
Qualquer direcção que tomasse lhe parecia errada. “É hoje que
vou acabar no calabouço”, pensou. “Não pode ser”, respondia a
si mesmo, “não fiz nada de que possam acusar.” Porém, uma voz
ribombava na sua cabeça: “Mas tiveste intenção de fazer!...”
Leonardo
tremia da cabeça aos pés, recuando, à medida que se sentia mais
encurralado na ourivesaria.
A
campainha do telefone retiniu, e foi como se Leonardo tivesse caído
subitamente na realidade. Aproveitando a situação, preparou-se para
sair, chocou contra um dos balcões da loja, a empregada acorreu a
ver se tinha havido algum prejuízo, Leonardo disse “desculpe...,
desculpe!”, deu duas voltas ataboalhadas sobre si mesmo, raspou
ainda numa das vitrinas, viu de relance o colar da baleia, acelerou o
passo e abandonou o estabelecimento, envolto em suores frios.
18
Logo
que se viu na rua, Leonardo desatou a correr sem se preocupar com a
direcção que seguia.
Norberto
pôs-se atrás dele, chamando-o pelo nome, mas a reacção do amigo
foi correr cada vez mais depressa, parecendo que a polícia ia no seu
encalço.
—
Vamos chegar
atrasados! — vociferava Norberto, na tentativa de travar a marcha
frenética do amigo. — A baleia vai ficar furiosa contigo.
Enquanto
falava, Norberto tentava alcançar Leonardo. Mas quando estava
prestes a pôr-lhe a mão em cima, o amigo conseguia sempre
escapulir.
A
certa altura, Leonardo mudou bruscamente de direcção, enfiando por
uma porta aberta à sua esquerda e desatando a subir as escadas.
Quase
sem fôlego, Norberto encostou-se à porta por onde Leonardo tinha
desaparecido. Depois, deu dois passos para a rua e inclinou a cabeça,
a fim de ter uma ideia sobre a altura do edifício. Faltavam apenas
cinco minutos para o encontro com a baleia no Príncipe Real.
Norberto
encetou a subida das escadas, mas deu com o amigo sentado no segundo
degrau do primeiro andar. Sentou-se a seu lado e disse-lhe que
estavam atrasados.
Abandonaram
o prédio em silêncio, meteram-se no Opel e seguiram em direcção
ao local do encontro com Laura e a mãe.
—
Vê se avistas a
baleia! — pediu Leonardo, visivelmente emocionado, quando estavam
praticamente a chegar.
—
É melhor
estacionarmos... — comentou Norberto.
—
Passamos de carro e
depois decidimos.
Mal
tinham acabado de deixar para trás o Príncipe Real, Leonardo gritou
que tinha visto a baleia!, o que levou Norberto a travar com
brusquidão, quase provocando o choque com o carro que vinha a
seguir.
—
Continua!, continua!
— implorou Leonardo.
—
Afinal, não queres
ver a tua filha?
Mas
Leonardo preferia que estacionassem o carro mais à frente e fizessem
o percurso a pé até ao Príncipe Real.
Norberto
já não sabia o que pensar das confusões e hesitações do amigo.
—
Nunca se sabe o que
pode acontecer — adiantou Leonardo, no momento em que abandonavam o
carro sobre o passeio e se preparavam para comparecer ao encontro. —
Talvez seja melhor ires falar com ela primeiro!
—
Fizemos mal em não
ter preparado o rapto para hoje. Nem tão cedo voltaremos a ter uma
ocasião como esta.
—
Se falasses com ela
primeiro, ao menos ficavas a conhecê-la.
A
poucos metros do Príncipe Real, Leonardo parou e pôs-se a olhar
para Norberto, perguntando:
—
Sempre queres ir
falar com a baleia?
—
Não acredito que
ela te agrida fora do seu ambiente...
—
Até lhe pode servir
de estímulo.
Norberto
decidiu avançar. Mas quando deu de caras com o Príncipe Real,
sentiu-se rapidamente inibido e a primeira reacção que teve foi
baixar-se e esconder-se atrás de um dos carros estacionados na
praça. Avistou a baleia, ao longe, sentada num banco, com os pés
enormes dentro de dois sapatos que pareciam lanchas e umas calças de
ganga que por pouco não rebentavam nas zonas onde se concentravam os
maiores níveis de gordura. Laura saltitava por entre a verdura, com
os cabelos negros brilhando na tarde e os braços erguidos atrás das
sombras deslizantes.
Depois de pensar um
pouco sobre o que fazer nos minutos a seguir, e incapaz de conquistar
mais um centímetro de terreno que fosse, Norberto voltou para junto
de Leonardo, informando-o acerca do que vira.
Decidiram
ir os dois para o sítio onde Norberto estivera a observar a baleia.
Agachados atrás do carro, viam Laura correr de um lado para o outro
e a mãe olhar para o relógio insistentemente.
—
Afinal, não vais
dar-lhe a notícia do teu casamento?... — perguntou Norberto com
malícia.
—
Era preferível que
fosses tu a falar-lhe no assunto em primeiro lugar...
Naquele
instante, Leonardo teve a impressão de ouvir Laura chamar por ele. A
palavra “papá..., papá...”, ressoava na praça, por entre o
barulho dos carros que passavam. Mas ele era um pai que não se
atrevia a sair de onde estava escondido e correr para Laura,
abraçando-a, por entre risos, beijos e abraços. A baleia tinha
razão quando o considerava um cobarde e se recusava a viver com ele.
Realmente, Laura não tinha pai. Porque o chamava e não obtinha
resposta. Era como se falasse com uma árvore, com um candeeiro de
rua, com uma mesa de esplanada.
—
Achas que a baleia
te autoriza a dar um passeio sozinho com Laura? — quis saber
Norberto.
—
É melhor não
exigir o impossível — comentou Leonardo.
—
Este é o momento
ideal para raptarmos a tua filha!
—
Já não sei porque
marquei este encontro...
Leonardo
sentou-se no chão e encostou a cabeça ao guarda-lama do automóvel
atrás do qual se escondia. Pouco depois, disse a meia-voz que a
baleia nunca teria ciúmes dele. E reconheceu o fracasso do seu
plano. Falhando aquele encontro, o próximo seria mais difícil. E,
provavelmente, Laura até o desprezaria, ou agrediria, pensando que
ele não quisera estar com ela naquele dia. A partir de então,
sempre que a filha fosse encerrada na varanda, durante a noite, os
seus gritos seriam mais cortantes e longínquos.
Quando
Leonardo e Norberto saíram de trás do carro, ao fim de uns bons
vinte minutos, o Príncipe Real estava deserto. Nem se ouvia um
pássaro para assinalar o fim da tarde.
19
—
Queres ir à procura
delas? — perguntou Norberto, tentando incutir alguma esperança ao
companheiro. Mas Leonardo estava a quilómetros de distância.
—
Acabou-se! — foi a
única palavra que conseguiu articular.
—
Ainda temos uma
hipótese... — murmurou Norberto.
—
As coisas não
deviam ter chegado a este ponto. Acabou-se...
Leonardo
recuou alguns metros e encostou-se à parede do prédio que estava
por trás dele. Fechou os olhos de gritos abafados, inclinou a cabeça
para trás e deixou-se estar assim, de pé, abandonado, enquanto
murmurava, numa voz cada vez mais débil:
—
Acabou-se...,
acabou-se...
Por
fim, deixou de emitir qualquer som. De braços caídos, rosto pálido,
corpo inerte, pernas ligeiramente adiantadas, parecia capaz de
desfalecer a qualquer momento, estatelando-se no passeio. A sua
respiração era lenta e profunda. Pela cabeça passavam-lhe imagens
cavalgando sílabas de pernas para o ar, sentimentos desconexos,
fragmentos de ideias, explosões de memórias breves, ameaças
desencontradas, sombras frondosas que se desdobravam até ao limite
da visão.
Leonardo
deixou descair o queixo, entreabrindo a boca e, subitamente, Norberto
reparou que ele ressonava a bom ressonar. De pé, encostado à parede
do prédio, em plena tarde lisboeta, estirado na vertical como numa
cama, de rosto tranquilo e distante, Leonardo dormia com cara de anjo
esfaqueado repentinamente surpreendido pela perda das asas. Dormia e
ressonava indiferente ao que o rodeava, alheio ao destino da filha
Laura, afundado no vazio de si próprio. As suas asas vagueariam pelo
tempo, oscilando ao sabor das correntes negras que sobrevoam os
fundos inacessíveis dos espaços. E lá, nessa distância imensa,
Leonardo nunca encontraria Laura. Chamá-la-ia, procurá-la-ia por
toda a parte, perguntaria a toda a gente, mas em vão. Laura partira
sem avisar, Laura escondera-se num tempo inexplicável, Laura estava
para além de todos os indícios.
Norberto
nunca tinha visto uma pessoa dormir de pé. Muito menos com a
facilidade e rapidez com que Leonardo o havia feito. Hesitou sobre o
procedimento a tomar naquele caso. Entre acordá-lo ou deixá-lo
dormir, preferiu não optar. O importante era não afectar o
equilíbrio do amigo. Se não se deve acordar os sonâmbulos,
provavelmente também não se deve acordar as pessoas que dormem e
ressonam de pé. Os efeitos podiam ser idênticos. Norberto recuou
alguns passos, guardando uma distância prudente da cena em que o
companheiro havia entrado, mas sempre com os olhos fixos nele, não
fosse acontecer-lhe algum imprevisto.
Vindos
de parte nenhuma, passaram dois homens que, perplexos, se detiveram a
observar Leonardo.
—
Está a dormir?... —
perguntou um deles, após os primeiros momentos.
—
Pssss — fez
Norberto, colocando o indicador sobre os lábios. — É melhor não
o acordarmos, para não o assustar.
—
Mais tarde ou mais
cedo, terá que vir a si — comentou um dos homens.
—
Mas só está a
dormir há minutos...
—
Há quantos dias não
vai à cama?
—
O problema é que se
calhar não prega olho.
—
Teve sorte em cair
no sono. Há gente que se habitua e passa meses sem dormir.
—
Não sei como o vou
tirar daqui...
—
Vá dar uma volta e
depois passe por cá a ver se já acordou!
Nesta
altura, havia mais de dez pessoas à volta de Leonardo, vendo-o
dormir e ressonar de rosto virado para a luz. Ninguém sabia o que
fazer.
—
Quer que eu chame um
médico? — perguntou uma senhora de meia idade na direcção de
Norberto.
—
É melhor não...
Ao
fim de duas horas, Leonardo ainda dormia, embora silenciosamente.
Desde que deixara de ressonar, tinha-se mexido uma vez, para coçar a
orelha esquerda. Pingos de suor escorriam-lhe pelo queixo,
lentamente, tropeçando nas saliências dos pêlos de barba,
contornando uns, esbarrando noutros, mas sempre deslizando em passo
de lesma.
Várias
dezenas de pessoas haviam passado por ele, umas parando e querendo
saber o que acontecera, outras simplesmente virando os olhos, ou nem
isso.
A
quem perguntava, Norberto mal sabia explicar o que sucedera... Dizia
que era por causa de uma criança que estivera a brincar ali a uns
metros de distância, que Leonardo tinha um problema com a mãe da
menina e que, de repente, lhe dera aquilo, começara a dormir contra
a parede sem mais nem menos e a ressonar como um navio. Depois,
Norberto ria de forma estridente e despropositada, para logo a seguir
voltar à mesma explicação...
As
pessoas ficavam sem saber o que pensar. Algumas deixavam-se estar com
caras sisudas a olhar Leonardo e outras afastavam-se, desconfiadas,
não fosse aquela história uma artimanha para atrair desprevenidos.
Norberto
sentia-se emparedado entre o que contava e a interpretação que as
pessoas davam à suas atitude. Não podia permanecer ali por muito
mais tempo. Até porque o frio da noite não tardava. Havia que tirar
Leonardo do Príncipe Real nem que fosse necessário carregá-lo às
costas para o carro. Por sorte, tinha estacionado relativamente
perto. Não punha a hipótese de trazer o automóvel para o sítio
onde se encontrava para não deixar o amigo sozinho por um minuto que
fosse. Nunca se sabia do que as pessoas eram capazes ante um ser
indefeso, a dormir, em pé, na via pública.
20
Norberto
abriu com o pé a porta traseira do carro e deixou cair no assento o
corpo desengonçado do amigo, que nem assim acordou.
A
fim decidir o que faria com Leonardo, que ressonava, de novo, fazendo
um tal ruído que até parecia que o carro tinha dois motores,
Norberto deu umas voltas pela cidade. Desceu ao Marquês, seguiu pela
Fontes Pereira de Melo, Avenida da República, Campo Grande...,
sempre mais distante do sítio em que Leonardo adormecera.
Deixá-lo
no seu quarto da Rua da Esperança seria arriscado porque não havia
quem olhasse por ele e não se sabia o estado em que ficaria depois
do que se passara no Príncipe Real. Podia acordar perfeitamente
normal como se nada tivesse acontecido, como poderia acordar
profundamente marcado pela perda da filha. Sim, porque o
desaparecimento de Laura significava realmente uma perda, conforme
poderia compreender quem tivesse estado no Príncipe Real naquela
dia, àquela hora, para interpretar o vazio que se gerou na praça no
momento em que Leonardo proferiu o termo “acabou-se”. Foi o nada,
o puro nada de Laura, que se implantou numa zona de metros em redor.
Ao
fim e ao cabo, Norberto era o único amigo de Leonardo, por isso
fazia todo o sentido que o acolhesse em sua casa. A mãe decerto não
se oporia à decisão.
De
qualquer forma, quando Norberto entrou com o amigo ao ombro, foi logo
estendê-lo na sua cama e fechou a porta, para não ter que dar
explicações imediatas,
Leonardo
caiu sobre a cama e deixou-se estar de braços abertos, a ressonar de
forma cada vez mais trepidante, ora fazendo lembrar uma orquestra
sinfónica, ora imitando na perfeição a passagem de um comboio
sobre uma montanha de pedras metálicas.
Norberto
sentou-se na beira da cama e deixou-se estar ali, inerte, a ver o
amigo. Era um momento sem alma. Porque Laura tinha desaparecido. Como
se alguém tivesse decidido executar o plano de rapto que Norberto
vinha a congeminar há tempos.
Laura
tinha-se esfumado, deixando Leonardo repentinamente sem chão, de
olhar fixo no céu de Lisboa, onde morrem os pombos deserdados.
A
mãe de Norberto interrompeu a solidão dos dois amigos, entrando
bruscamente no quarto, para saber que barulho era aquele que ameaçava
pôr-lhe a casa abaixo.
Ao
abrir a porta, deu de caras com o filho sentado na cama e um
desconhecido estirado a ressonar como uma betoneira.
Norberto
levantou-se prontamente, correu para a mãe e pô-la fora do quarto.
—
Não me faças isso!
— disse ela. — Devias ter mais respeito por mim. Não admito que
metas gente de fora cá em casa.
—
Não é gente de
fora — respondeu Norberto. — É Leonardo, o meu amigo Leonardo,
que anda comigo todos os dias!
—
Que anda contigo
todos os dias?! Mas tu estás sempre a dizer que não tens amigos!
Norberto
respondeu mal-humorado que ela não tinha nada que se meter na sua
vida e voltou para junto do amigo, enquanto a mãe protestava,
dizendo que não estava certo ele fazer aquilo sem sua autorização,
que era um abuso, um descaramento...
—
Tanto que eu
trabalhei para seres alguém — ouviu-a exclamar — e esta é a
paga que me dás! Ingrato! Ingrato!! — e quando proferia a palavra
“ingrato” ia levantando a voz, progressivamente, até não se
ouvir mais nada, nem sequer o ressono de Leonardo, só “ingrato...,
ingrato...”, como se aquela palavra concentrasse em si a dor de
toda uma vida. “Ingrato” era Norberto e o mundo e o tempo e todos
os motivos de desilusão que se iam acumulando na sua memória ao
longo dos anos. Só que o filho era o motivo mais à mão e por isso
a palavra “ingrato” lhe assentava perfeitamente.
Norberto
sabia que era apenas uma vítima dos desgostos da mãe e receava que
os seus gritos de “ingrato!, ingrato!” acabassem por despertar
Leonardo, enlouquecendo-o. E se Leonardo não enlouquecesse, o seu
medo era que fosse a mãe a perder o tino. Encurralado entre duas
possibilidades de loucura, avançou para a mãe, dizendo —
cale-se!, cale-se! — Porém, quanto mais a mandava calar mais ela
gritava — ingrato!, ingrato! — O barulho era tal de forma
ensurdecedor que Norberto pensava que Leonardo já devia ter
acordado, havendo mesmo o perigo de enlouquecerem ambos, o amigo e a
mãe. No meio dos berros e da confusão, com um a dizer “cale-se”
e o outro “ingrato”, Norberto já se via sozinho no mundo, ao
volante do seu Opel, vagueando pelas ruas de Lisboa sem ter uma
sombra onde cair.
21
Leonardo
só acordou no dia seguinte. Abriu os olhos e viu Norberto sentado na
cama a fixá-lo. Ao reparar que o amigo despertara, Norberto deu um
salto, dirigiu-se à janela e abriu-a. Mas Leonardo fez um gesto com
a mão, suplicando que o deixasse às escuras.
—
Queres tomar alguma
coisa? — perguntou Norberto.
A
resposta foi negativa. Leonardo tinha os olhos abertos, mas era como
se estivesse morto sobre a cama. Para além do “não” que fizera
com a cabeça, o seu corpo não voltara a mexer. Nem sequer as
pálpebras. Se ressonasse, era porque dormia de olhos abertos. Como
não o fazia, dava a ideia de ser um cadáver. Vestido de fato e
gravata. Um simples invólucro sem nada por dentro.
Norberto
saiu do quarto e foi sentar-se à mesa para o pequeno-almoço.
Despejou o café na chávena, uma colher de açúcar, que se pôs a
mexer, maquinalmente.
A
mãe surgiu do fundo do corredor e perguntou-lhe se pretendia mais
alguma coisa. Perante a ausência de resposta, adiantou que teriam
que conversar sobre o homem que ele metera na sua cama.
—
Não é um homem —
esclareceu Norberto. — É um amigo.
—
Um amigo que nunca
vi na frente e de quem nunca te ouvi falar.
—
Já disse que não
tenho que te dar contas sobre a minha vida.
—
Onde dormiste a
noite passada?
—
Dormi onde me
apeteceu!
—
Um dia, hás-de
arrepender-te da forma como me tratas. Passas o dia fora e até
parece que nem te lembras que tens mãe.
Norberto
contou que o amigo perdera uma filha, a única filha que tinha, mas a
mãe reagiu com prontidão, dizendo que ele não viesse com mentiras,
que estava farta de invenções, e que mais dia menos dia era ela
quem desapareceria do mapa!
—
Estou farta de
trabalhar nesta casa, para um lado e para o outro, e para quê? Para
alimentar um vadio!, um homem que nada faz e que nem se preocupa em
arranjar emprego. Não aguento mais! Estou aqui sempre fechada, como
se estivesse presa...
—
O mundo é grande...
—
Sair para onde? Com
quem? Para fazer o quê? Nem tenho uma pessoa a quem telefonar. Às
vezes, até dá a impressão de que não há casas nem países lá
fora. Ninguém me liga. É como se eu não existisse. Por isso, não
tenho para onde ir. Já foste a minha razão de viver, mas há muito
tempo que te afastaste e deixaste de me falar. Sou uma planta num
canto de estufa, que apenas sobrevive porque ainda recebe alguma
luz... Tantas vezes que te pedi para me levares a ver o rio. E nunca
me fizeste a vontade. Fica aqui tão perto o rio, mas vou acabar os
meus dias sem o conhecer... És como o teu pai. Durante anos,
prometeu que me levaria ao rio a passear. E ainda hoje estou à
espera.
Norberto
ouvia a mãe e pensava em Leonardo. Preocupava-o que o amigo pudesse
estar a ouvir a conversa. A história do rio incomodava-o. Não sabia
exactamente porquê, mas havia naquela questão do rio algo que o
deixava fora de si. A mãe não tinha que falar num assunto que vinha
completamente a despropósito. O rio ficava tão perto, afinal, que
ela não precisava de ninguém que a levasse até lá. O seu
argumento era uma simples desculpa para não sair. Desde há anos que
a mãe não punha o pé na rua. Até os mantimentos lhe eram levados
a casa pelo merceeiro do bairro, que lhe conhecia os hábitos ao
pormenor, os gostos, as quantidades, as marcas preferidas. Passava o
tempo na cozinha, mesmo quando não tinha nada que fazer. Amuada com
tudo. Ressentida.
Durante
cinco dias e cinco noites, Leonardo manteve-se fechado no quarto de
Norberto, sem emitir palavra, sem comer, sem beber, sem ressonar. Só
quando o amigo tentava abrir a janela, Leonardo fazia que “não”
com um movimento de braço.
Norberto
também esteve sempre em casa durante o tempo em que Leonardo não se
levantou. Por diversas vezes, a mãe tentou deslindar o que se
passava entre o filho e o amigo que ele trouxera para casa, mas a
posição de Norberto nunca se alterou. Se a mãe queria ir ver o
rio, que fosse, a distância era curta, mas quanto a Leonardo nada
tinha a acrescentar.
Ao
fim do quinto dia, Norberto tomou a decisão de entrar no quarto onde
estava o amigo e abrir a janela de par em par, obrigando-o a
enfrentar a realidade. Fê-lo com tanta convicção que nem olhou
para a cama quando a contornou para se dirigir à janela. Logo que o
clarão de luz invadiu o quarto, reparou que a cama estava vazia.
Teve um sobressalto, um pressentimento. Correu para a casa de banho.
Ninguém. Precipitou-se para a rua.
22
Leonardo
estava sentado no Opel, a poucos metros da casa de Norberto:
—
Estou farto de
esperar por ti — disse.
—
Podias ter dito que
ias sair... — comentou Norberto, enquanto se sentava a seu lado,
pondo as mãos no volante e respirando fundo.
—
Há cinco dias que
não ressono!... — acrescentou — Leonardo. — Cinco dias é
muito tempo. Sinto-me mal quando não ressono. Para mim, ressonar é
tão importante como respirar e comer...
Norberto
não soube que pensar das palavras do companheiro. Nem estava certo
de ter percebido bem. Em vez de dizer qualquer coisa sobre a filha,
Leonardo queixava-se de não ressonar há cinco dias!... E insistia
no assunto, dizendo que sentia falta de se ouvir ressonar enquanto
dormia. Dormir e ressonar era um dos seus maiores prazeres.
Importante era ouvir o seu próprio ressonar. Porque só ouvindo-se
ressonar tinha a consciência de estar a dormir, uma experiência
mais profunda que todas as outras. Para quem não ressonasse ou não
se ouvisse ressonar, o sono era apenas um estado de abandono, de
inconsciência. Era a morte, na verdade. O fim de tudo. A desolação
completa. Para escapar à experiência da morte enquanto se dormia,
era necessário ouvir o próprio ressonar, ter a noção de dormir
estando acordado. Quem ouvia o seu ressono não perdia a noção de
si mesmo. Havia um grande prazer no facto de se saber que se estava a
ressonar e dormir ao mesmo tempo. Uma coisa era dormir, outra coisa
era saber — sentir — que se dormia. O ressono era a linguagem da
inconsciência em vigília, o eco da consciência adormecida. Quando
dormia, ressonando e ouvindo-se ressonar, Leonardo não pensava em
nada, não se deixava afligir por coisa alguma. Dormia e tinha a
certeza de que assim era através do ressono que ouvia. Podia
acompanhar razoavelmente o que se passava no mundo, podia descansar,
podia reflectir de alguma forma, podia divagar...
O
facto de não dormir há cinco noites deixava-o sem balizas, sem
pontos de referência.
Norberto
perguntou se Leonardo queria um cigarro, mas este respondeu que tinha
deixado de fumar.
—
Se não fumo há
cinco dias, mais vale deixar de vez. Prefiro ressonar a fumar.
Para
Norberto, um cigarro sempre fazia algum bem. Pelo menos
descontraía... Leonardo achava que fumar era uma ilusão. O cigarro
dava a falsa impressão de estarmos acompanhados. Só que, na
verdade, os cigarros não nos compreendiam. Nem ensinavam o que quer
que fosse sobre a morte.
—
Sei que deixando de
fumar me vou sentir mais só — adiantou Leonardo — mas esta é a
maneira de me conhecer melhor. Quero sentir tudo, do princípio ao
fim. Por mais que custe. Quando me apetecer fumar, hei-de pôr-me a
dormir. O prazer de ouvir o nosso próprio ressonar é mais forte do
que o prazer de saborear um cigarro. Com o hábito, o cigarro perde
qualidade.
—
Não estás a querer
fugir à realidade? — perguntou Norberto.
Mas
Leonardo achava que não. Se continuasse a fumar é que estaria a
fugir à realidade. Ainda era jovem, tinha muitos anos de vida à sua
frente. Podia sempre recuperar o tempo perdido, não repetindo os
erros do passado...
Norberto
entendia de maneira diferente. Não era evitando os erros que se
deixava de cometê-los. Só os erros faziam sentido. O que
interessava era saber geri-los, de forma a criar novas situações
que, por sua vez, davam origem a novas dinâmicas, novos erros. O
contrário do erro só existia ao nível teórico. Na prática, era
impossível agir de acordo com as normas. Ou, pelo menos, nada
indicava que o nosso comportamento fosse capaz de agir segundo uma
determinada teoria. Esta, como era sabido por toda a gente, nunca
coincidia com a prática. O erro, sim, era a fuga ao estabelecido,
era a não coincidência entre dois espaços, dois momentos. E, por
ser não coincidência, o erro era a liberdade, era a ausência de
obstáculos no caminho.
—
Só o erro existe,
só o erro vale a pena, só o erro conta — concluiu Norberto.
Leonardo
não replicou. Estava pensativo, com a cabeça caída para a frente,
como se tentasse dormir a todo o custo. Norberto reparou que o amigo
tinha a boca seca e a gravata desalinhada.
—
Estás a dormir? —
perguntou.
—
Não, estou só a
fazer umas contas de cabeça...
—
Queres ir a algum
lado?
—
Tudo menos voltar
atrás...
E
enquanto Norberto não se decidia, Leonardo pôs-se a bater com as
mãos nas pernas, ensaiando ritmos, que fazia acompanhar por sons
rápidos e variados de boca.
—
Podíamos formar uma
banda — sugeriu num dos intervalos para respirar.
—
E os instrumentos?
Mas
Leonardo achava que podiam perfeitamente dispensá-los. Tinham os
pés, as mãos, as bocas, os materiais do carro, os toques nos
vidros, nos estofos, no volante...
—
Uma banda pode ser
muita coisa — disse. — Eu componho e tu cantas. Damos concertos
no automóvel, que é o nosso palco ambulante. E nem precisamos de
audiência. Somos artistas e espectadores ao mesmo tempo. Podemos
fazer a música perfeita ou fazer a maior borracheira, sem corrermos
riscos.
Norberto
entendia que o amigo queria apenas esquecer alguma coisa. A sua ideia
da banda era uma desculpa, uma forma de preencher o vazio que o
inundava. Norberto não se sentia à vontade para lhe falar de Laura.
Receava que ao ouvir o nome da filha, ele voltasse a reagir mal e
caísse de cama para o resto dos seus dias. Havia de esperar que
Leonardo abordasse o assunto. Nem que fosse dali a dez anos. Vendo
bem as coisas, Laura não tinha morrido. Norberto atirou a ponta de
cigarro pela janela, deu a volta à chave na ignição e arrancou.
23
Tomou
a direcção do rio e, ao avistá-lo, recordou-se do desejo que a mãe
nunca realizara. Apeteceu-lhe voltar a casa e convidá-la a vir
conhecer o Tejo. Mas logo a seguir pensou que Leonardo não se
encontrava nas melhores condições. Não lhe interessava que a mãe
visse o amigo naquele estado, para evitar que ficasse com uma ideia
menos boa acerca dele.
O
rio começava a atormentá-lo, a torturá-lo por dentro, só de
pensar que a mãe podia morrer sem o ver.
Norberto
seguiu na direcção de Belém, mas acabou por inverter a marcha, ao
pensar que para a frente tinha rio e mais rio à sua espera.
Chegado
ao Terreiro do Paço, percebeu que o rio lhe entraria pelos olhos na
zona do Parque das Nações. “O mar é outra coisa...”, já dizia
a mãe, recordando a ilha onde nascera. “É outra coisa... — nada
que se compare a um rio.”
Agora,
percebia por que razão a mãe nunca se atrevera a conhecer o rio
sozinha. Percebia mesmo por que motivo ela nunca saía de casa. É
que o rio estava em toda a parte, o rio cercava Lisboa por todos os
lados, o rio dominava em todas as frentes, ameaçando encher e
inundar ruas, casas, lojas, carros. O mar ficava longe e o pior que
fazia era embravecer, limitando-se a bater contra as rochas e os
areais. O mar era a respiração da ilha, a sua música, o caminho
dos que nada tinham. Acabava por constituir um elemento fundamental
nas tempestades.
O
rio nem sequer ameaçava. Não se eriçava, nem rugia, envolto em
ondas. Enchia apenas, sem limites. Enchia, de mansinho, sem inspirar
receios e apoderava-se calmamente das coisas, das vidas, das pessoas.
O
que valia era Lisboa ser feita de colinas. Para proteger a cidade dos
avanços do rio. Só que a mãe era cautelosa. Nem confiava nas
colinas da cidade. Vivia aferrolhada em casa, à espera que o filho,
um dia, se decidisse a mostrar-lhe o rio. O mesmo rio no qual a
cidade se revia, há séculos, se repensava, se reconstruía.
Quando
deu por si, Norberto já estava na Calçada de Carriche, rumando a
Loures, para fugir ao rio, à semelhança do que faziam centenas de
outros carros que naquele momento abandonavam Lisboa. Os poucos que
entravam na cidade deviam ser de outra galáxia. Turistas, pessoas de
outras latitudes, com planos concretos e incontornáveis.
A
certa altura, desatou a chover. Primeiro a chuviscar, depois a
chover. O limpa-pingas do Opel não funcionava. Norberto não via um
palmo de estrada à sua frente.
—
Pára! — avisou
Leonardo, como se despertando bruscamente da sonolência em que
caíra.
Mas
Norberto achava que ainda tinha visibilidade suficiente para
continuar a descer a Calçada.
—
Vais bater! —
insistiu Leonardo. — Encosta à direita.
Nesse
preciso momento, houve uma falha do motor e Leonardo berrou:
—
Não te disse para
encostares?! Nunca fazes o que digo!
Mas
Norberto conseguiu manter o carro a trabalhar, insistindo em descer a
Calçada sem limpa-pingas. Leonardo é que não esteve pelos ajustes:
desprendeu o fio que segurava a porta do seu lado, abriu-a e ameaçou
sair se o amigo não parasse o carro.
A
atitude de Leonardo enervou Norberto, que se pôs a olhar para os
lados, tentando conquistar espaço para alcançar a faixa direita da
estrada, apesar de não ter pisca que lhe valesse naquela aflição.
—
Não consigo! —
exclamou.
Depois
de várias tentativas e hesitações, já quase no fim da descida, o
automóvel acabou por fazer um pião, ficando atravessado no meio da
rua, com o motor parado.
Houve
uma quantidade de travagens e apitos por parte de outros condutores,
carros que derrapavam e se desviavam a poucos milímetros do de
Norberto, enquanto este dava tudo por tudo para pôr o motor do Opel
a trabalhar. Carregava no acelerador, freneticamente, e dava a volta
à chave na ignição, mas o veículo não respondia.
—
Estes tipos de
Odivelas são doidos!! Vão bater-nos — berrou Norberto, só então
reparando que Leonardo tinha aproveitado a confusão para abandonar a
viatura e pôr-se aos pulos na rua, indiferente à chuva que caía
copiosamente, fazendo sinais frenéticos aos condutores, para que se
afastassem, para que tomassem cuidado, para que abrandassem. Depois,
metia a cabeça pelo vidro do carro e dizia para Norberto:
—
Estás a encharcar o
motor!, não carregues no acelerador.
—
Agora é que nunca
mais saímos daqui — desabafou Norberto. — A Calçada de Carriche
é tramada. Vão apertar-nos sempre e impedir-nos de encostar.
Ninguém olha, ninguém quer saber. Daqui para a frente já não é
Lisboa, é outro país, outro povo.
Leonardo
dialogava com alguns condutores que pretendiam saber o que se havia
passado. Esbracejava e saltava, dentro do fato amarrotado, fazendo
lembrar um maestro que exibia a sua arte ao ritmo da passagem dos
carros.
24
Ao
fim de cerca de meia hora, completamente encharcados, conseguiram
empurrar o Opel para a berma da estrada. Sentaram-se no carro, mas
Norberto logo percebeu que resfriariam e constipariam em poucos
minutos.
—
É melhor não
ficarmos aqui — comentou.
—
Não temos para onde
ir. Chove cada vez mais... E estou cheio de comichão — replicou
Leonardo.
—
Vamos a pé. De
qualquer maneira, já estamos molhados.
Mas
Leonardo não concordou. E disse que nem dali a três horas chegariam
a casa.
Norberto
respondeu-lhe com uma gargalhada e declarou que arrancaria naquele
mesmo instante. Quanto a Leonardo, ou seguia o seu exemplo, ou
ficaria no carro a apodrecer com a sua comichão!...
A
última expressão de Norberto fez eco na cabeça de Leonardo: “Ou
ficaria no carro a apodrecer com a sua comichão..., a apodrecer com
a sua comichão...”
Sem
perder tempo, Norberto saiu do carro e avançou pela Calçada de
Carriche acima, em sentido contrário ao trânsito, determinado a não
olhar para trás. Sabia que, mais minuto menos minuto, o amigo se
decidiria a seguir-lhe os passos. Se Leonardo não o tivesse enervado
num dos momentos cruciais da condução, nada daquilo teria
acontecido. Nem precisou de olhar para saber que o companheiro vinha
a segui-lo. Aliás, fazia parte da sua estratégia não olhar para
trás. Por nada deste mundo. Mesmo que o céu desabasse sobre Lisboa.
Havia de chegar a casa sem trocar uma palavra com Leonardo.
“Se
pensa que vou falar-lhe, está muito enganado”, murmurava Leonardo.
“Só um verdadeiro nabo faria uma manobra tão desastrada. Se
tivesse encostado o carro quando eu lhe disse para o fazer, tudo
teria sido diferente”. Leonardo meteu a mão ao bolso. Nem um
centavo. Não tinha hipóteses de tomar autocarro. Pedir boleia
estava fora de questão. Era a última coisa que faria na vida. “Não
volto a meter-me naquele Opel”, dizia de si para si. “Já devia
ter aprendido. Nunca mais...”
Alguns
metros mais à frente, Norberto pensava que Leonardo não tinha nada
que se ter posto aos pulos no meio da estrada. Tinha sido um desvario
escusado. “Que é que as pessoas deviam ter pensado? Que éramos
dois foragidos à Justiça!”
Olhou
para o relógio e fez contas de cabeça. A distância era maior do
que parecia. A chuva não ajudava. Ainda faltava bastante para chegar
ao Campo Grande. E depois vinha Entrecampos e o Saldanha... O vento
mudou de direcção e passou a bater-lhe na cara, fustigando-o com
grossas bátegas de chuva. Pôs a hipótese de se abrigar em qualquer
sítio, mas concluiu que Leonardo o ultrapassaria, aproveitando para
se rir dele. “Vai dizer que fui eu que quis fazer o percurso a pé,
mas que no fim de contas me deixei assustar por um chuvisco!” E
mesmo que não parasse para se abrigar, Norberto corria o risco de
ser ultrapassado pela marcha rápida e ritmada que tinha a certeza
Leonardo vinha fazendo nas suas costas. Apesar de ter no bolso umas
centenas de escudos, não punha a hipótese de tomar autocarro.
Leonardo
tratou de estugar o passo. Não queria ver encurtada a distância que
o separava do companheiro. Ao fim de umas centenas de metros, já se
encontrava quase lado a lado com Norberto. Só o barulho dos carros
impedia que ouvissem a respiração um do outro.
Se
Norberto acelerasse a marcha para evitar que Leonardo o alcançasse
entraria em passo de corrida. E, se o fizesse, sucumbiria pelo
caminho. A sua intenção era manter o ritmo mais acelerado possível,
sem cair em exageros.
Leonardo
tinha o objectivo de ultrapassar o amigo. Sabia que ele não forçaria
o passo porque receava que o coração não aguentasse. Não fora
Leonardo a sugerir aquela solução, mas já que Norberto optara por
ela, Leonardo demonstraria que estava à altura dos acontecimentos,
chegando à Rua da Esperança muito antes de o amigo atingir a Rua da
Rosa. E prometia a si mesmo que não voltaria a procurá-lo. Se
Norberto o fizesse, havia de ver como reagiria na altura. Aquilo não
era comportamento que se tivesse. Ir-se embora, sem mais nem menos,
dizendo que ele ficasse “no carro a apodrecer com a sua comichão”
era uma atitude inclassificável. O companheiro fora longe demais.
Pelo
canto do olho, Norberto viu que o amigo caminhava praticamente a seu
lado. O melhor era deixá-lo ir. Não responder à provocação.
Ainda havia muito caminho a percorrer e não se sabia o que lhes
podia estar reservado mais à frente. Até ao Campo Grande, o corpo
não se ressentia. Adaptava-se ao ritmo dos passos. Depois é que se
veria de que forma suportaria o resto da marcha. Se seria capaz de
manter a aceleração ou se teria necessidade de abrandar.
Em
poucos minutos, Leonardo ganhou um avanço significativo sobre
Norberto. Ultrapassou-o sem desviar o olhar, ainda na subida, e
desatou a andar por ali fora como se tivesse uma meta a atingir, um
tempo a cumprir, uma multidão à espera para o aplaudir. A sua maior
estatura permitia-lhe conquistar mais terreno com menor número de
passos.
A
fim de não ter que se confrontar com a vantagem do companheiro,
Norberto foi-se deixando ficando para trás, foi desacelerando,
progressivamente, até normalizar o andamento. Tinha muito tempo para
chegar a casa. Não faria sentido competir com o amigo. Só era
preciso não arrefecer o corpo. E, entretanto, ir pensando no que
havia de contar à mãe.
25
Antes
de chegar ao Campo Grande, Norberto já perdera Leonardo de vista...
As pernas tremiam-lhe de uma forma que o fazia sentir-se bem consigo
mesmo. Dava prazer senti-las fraquejar. Porque a cada momento que não
iam abaixo, Norberto tinha a noção concreta da sua capacidade de
resistência. E crescia, crescia... Só esperava que o coração não
o deixasse mal e que as palpitações não voltassem a afectá-lo,
obrigando-o a pedir boleia. Disse a si próprio que faria a vontade à
mãe, logo que chegasse a casa. Mudaria de roupa e iria com ela ver o
rio, quer fizesse chuva ou sol. Iriam ao Terreiro do Paço, que não
ficava longe, para a mãe apreciar as águas que banhavam Lisboa.
Algo lhe dizia que não devia adiar a promessa por mais tempo. Nunca
se sabia o que podia acontecer. Só esperava chegar a casa de
perfeita saúde e que a mãe não arranjasse uma qualquer desculpa
para continuar a não pôr o pé na rua. O seu comportamento era
imprevisível. E podia muito bem reagir ao convite do filho, dizendo
que já não queria ver o rio, que mudara de ideias, que já era
tarde demais, que havia de morrer sem realizar aquele sonho. Tanto
fazia. Era apenas um sonho. Nada de especial. Não se perdia coisa
por aí além. Que Norberto não se incomodasse por ela, que fizesse
a sua vida, que fosse dar uma volta com o amigo, que aproveitasse o
tempo para se distrair.
Leonardo
não olhava para trás, mas sabia que Norberto tinha ficado a
quilómetros de distância. Sentia-se mais vigoroso do que nunca.
Talvez pelo facto de estar há cinco dias sem fumar. Aquela caminhada
viera mesmo na melhor altura. Ainda por cima debaixo de chuva. Era um
teste à sua resistência. De há alguns dias para cá, a sua vida
não era a mesma. Não sabia explicar em que sentido, nem porquê,
mas estava certo de que nada voltaria a ser como dantes. O casaco
ensopado pela chuva incomodava-o, pesando-lhe como chumbo sobre os
ombros, e a gravata, embora desapertada, dava-lhe uma sensação de
asfixia. Achou que não tinha necessidade de continuar amarfanhado
por aquele tipo de vestuário e desfez-se de ambas as peças,
despindo-as e atirando-as para o meio da estrada. Depois, decidiu
libertar-se da camisa, também. De tronco nu, sentia-se mais leve.
Por isso, tinha a nítida percepção de que cada passo que dava
rendia a dobrar. Vendo Leonardo passar, meio despido, algumas pessoas
olhavam-no, curiosas. E houve até quem parasse o carro e lhe
oferecesse boleia. Um idoso quis partilhar com ele o guarda-chuva.
Mas, à medida que andava, Leonardo ia cada vez mais acelerado. Em
vez de se cansar, era como se rejuvenescesse a cada movimento de
pernas. Por isso, não queria saber de ninguém. Apesar de algumas
vagas recordações que insistiam em toldar-lhe a mente. E de uma
espécie de sombra que se esquivara por detrás de uma árvore no
Príncipe Real. Com o tempo, a tempestade amainaria, com certeza, e
os dias tornar-se-iam doces. Nada havia a recear. Porque tudo era
temporário. E, assim, até os maiores pesadelos se esvaíam e
desapareciam no horizonte. O importante, por isso, era saber esperar.
Até que o temporário desaparecesse dentro de outro temporário e
assim sucessivamente.
O
que Leonardo queria era chegar o mais depressa possível ao seu
quarto da Rua da Esperança. Antes que Norberto o pudesse tramar. Não
havia que estar com indecisões nem com dúvidas. Daquele dia em
diante veriam quem ele era, realmente...
Na
zona do Campo Pequeno, quando Leonardo já nem se recordava da hora a
que saíra da Calçada de Carriche, houve qualquer coisa que chamou a
sua atenção. Qualquer coisa que ele não sabia explicar. Primeiro,
pareceu-lhe um som, mas pouco depois tornou-se evidente que não era.
A chuva deixava-o confundido. Aproximou-se para observar o que se
encontrava sobre o passeio, do lado da praça de touros, mas não
conseguiu os seus intentos, porque havia muita gente amontoada no
sítio. O que quer que fosse que ali se encontrava ou estava a
acontecer só seria visível quando a maioria das pessoas se
afastasse. Mas isso nem tão cedo. A água que caía não afastava
ninguém da zona. Lisboa era uma cidade de acção. Mesmo quando nada
acontecia, bastava um simples toque entre dois carros, o aluimento de
uma parede, ou um ligeiro barulho numa obra qualquer para logo se
juntar uma quantidade de gente parada a olhar. E, deste modo, a
cidade palpitava de agitação, andava de um lado para o outro num
frenesim incomparável, saltava sobre si mesma, rua atrás de rua,
até surgir outro acontecimento menor que suplantava o anterior, e
depois outro e outro...
Leonardo
ainda tentou furar o aglomerado de gente, metendo-se por entre as
pessoas e os muitos guarda-chuvas, mas não teve hipóteses.
Afastou-se
para uma distância considerável e sentou-se no chão à espera de
Norberto. A amizade que os unia era sem dúvida superior a qualquer
zanga. Leonardo já nem se lembrava dos motivos pelos quais chegara
sozinho ao Campo Pequeno. Confundia o Príncipe Real com a Calçada
de Carriche e estava convencido de que lhe haviam roubado o casaco, a
camisa e a gravata...
Quase
uma hora mais tarde, avistou Norberto, caminhando de forma decidida e
compassada. Pensou esconder-se atrás de uma árvore e pregar-lhe um
susto, mas logo a seguir reflectiu melhor e decidiu que era
preferível esperar...
26
Norberto
passou por Leonardo como um furacão tranquilo, sem pressas,
indiferente, e manteve o ritmo da caminhada, sem ligar à pequena
multidão que se tinha concentrado no Campo Pequeno.
Ao
ver o amigo passar, a poucos centímetros de distância, Leonardo
ainda o seguiu com os olhos, intensa e demoradamente, tornando óbvio
que estava disposto a esquecer tudo. Mas a sua postura conciliadora
não surtiu efeitos.
—
Depois não me peças
para te ajudar a empurrar o carro! — berrou, levantando-se, ao
perceber que o amigo não recuaria. Mas nem assim obteve uma reacção
de Norberto.
Em
tronco nu, Leonardo percebeu que tinha que fazer qualquer coisa. E
decidiu ir andando em direcção ao Saldanha, não fosse Norberto
ganhar um avanço irrecuperável. Quer fizessem as pazes, ou não,
Leonardo teria sempre que chegar primeiro do que Norberto,
independentemente da distância a que ficava a meta de cada um.
Depois
de ter deixado Leonardo para trás no Campo Pequeno, Norberto não
tinha a certeza sobre o procedimento que o amigo teria. Aquela fora a
primeira vez na vida que havia passado por ele sem lhe dirigir
palavra. Não podia esconder a emoção que a sua própria atitude
lhe causava. Nunca se julgara capaz de semelhante gesto. “Estou a
desprezá-lo”, pensou Norberto. “Não é possível, não faz
sentido, não tenho motivos para isso. Leonardo precisa de ajuda.
Está transtornado por causa da filha. Nunca mais foi o mesmo, desde
que a perdeu no Príncipe Real. Estou a ser injusto...”
Apesar
do que sentia, contudo, Norberto não estava disposto a ceder. Para
não dar parte de fraco. Continuaria a sua caminhada como se Leonardo
não existisse. O que não queria dizer que a certa altura não
parasse numa montra para tentar espiar o amigo pelo canto do olho. Ou
talvez se detivesse num quiosque de jornais e olhasse de viés,
enquanto fingia ler as notícias. Não transigiria mais do que isso.
Ao
caminhar pela Avenida da República, Leonardo procurava não chamar a
atenção do companheiro desavindo. Por uma questão de princípio.
Se estavam zangados, era necessário manter a coerência. Sempre que
se deparava com um cruzamento, simulava uma mudança de direcção.
Mas só o fazia enquanto atravessava a transversal. Uns metros mais
adiante estava de novo no passeio da avenida que conduzia ao
Saldanha.
Perto
do cruzamento com a Duque d’Ávila, Leonardo viu Norberto hesitar,
parar, olhar em volta de cabeça baixa e dirigir-se a um indivíduo
que estava encostado à porta de um prédio. Dava a ideia de se
sentir culpado. Obviamente, pedia-lhe um cigarro. Leonardo viu duas
ou três baforadas de fumo elevar-se entre os dois e Norberto
afastar-se a seguir, prosseguindo a sua marcha.
Naquele
preciso instante, Leonardo sentiu como se Norberto o tivesse traído.
A ele, Leonardo, é que o amigo devia ter pedido lume, apesar de ter
deixado de fumar. Era ridículo pedi-lo a um desconhecido. E pensou
que seria trocado por outro, sem grandes problemas, caso a sua
separação de Norberto se viesse a revelar definitiva. Foi invadido
por uma onda de calor e perturbação que não soube explicar. Ainda
há pouco estava disposto a cortar de vez com Norberto e agora já o
incomodava o facto de pensar que seria facilmente substituído.
Entretanto,
a breve paragem de Norberto para pedir um cigarro tinha permitido a
Leonardo reduzir a distância que o distanciava do amigo.
Leonardo
acelerou o passo e em poucos minutos estava praticamente lado a lado
com Norberto. Mas não se atreveram a olhar um para o outro.
Se
mantivesse o ritmo, Leonardo ultrapassaria o amigo em poucos
segundos. Por isso, abrandou. Não queria perder Norberto de vista.
Nem desejava que o amigo voltasse a pedir lume a um desconhecido.
Desceram
a avenida Fontes Pereira de Melo, lado a lado, fazendo lembrar dois
irmãos a caminho da praia num domingo à tarde, sem saberem o que
dizer um ao outro.
Perto
do Marquês, Norberto foi detido por uma cigana que lhe quis ler a
sina. Leonardo ficou às voltas consigo mesmo, sem saber o que fazer
para não ganhar vantagem sobre o companheiro. Parar seria o mesmo
que dar a entender que se encontrava à sua espera, tornando assim
evidente que estava pronto para reatar relações. A fim de iludir o
embaraço, não encontrou melhor saída do que baixar-se, dobrar-se
sobre o joelho esquerdo e simular que apertava o atacador do sapato.
Na tentativa de dar consistência ao estratagema a que recorrera,
deixou que Norberto o ultrapassasse, de novo. E só quando o amigo se
encontrava a vários metros de distância, acabou de amarrar o sapato
e foi no seu encalço.
Seguiram
juntos, e mudos, até à Rua da Rosa. A poucos metros de distância
da porta do prédio onde Norberto residia, ambos abrandaram a marcha.
Norberto porque tencionava terminar ali a sua caminhada e Leonardo
porque esperava ser convidado a entrar, nem que fosse por uns breves
momentos para recuperar do esforço dispendido desde a Calçada de
Carriche. Mas Norberto não esteve com meias medidas. Sem olhar para
o amigo, meteu a chave à porta e desapareceu pelas escadas acima.
27
Norberto
mudou de roupa e foi dizer à mãe que estava pronto para ir com ela
ao rio.
Todavia,
a mãe não pareceu dar importância às palavras do filho,
continuando de olhos fixos na televisão.
Ele
puxou-a por um braço e ela soltou um gemido. Há anos que ninguém a
provocava daquela maneira. Nem para lhe pedir um favor, nem para lhe
fazer uma vontade.
Mas
aquele era o dia em que Norberto parecia decidido a fazer com que a
mãe enfrentasse o rio de uma vez por todas. O rio de todas as
lamentações. Sempre que a mãe se queixava de alguma coisa que não
queria especificar falava do rio. Do rio que, segundo dizia, nunca
havia de conhecer. E muitas vezes resmungava, encostada à vidraça,
observando os telhados do bairro que a impediam de ver mais longe.
Resmungava durante horas, maldizendo a sua sorte. Resmungava como se
esperasse em vão por alguém surgido das brumas do fim da rua, cujas
fronteiras nunca ousara ultrapassar, alguém esquecido, mas vivo,
mortalmente vivo, cada vez mais nítido na sombra dos seus olhares
sobre a cidade. Quem resmungasse metade do que ela já resmungara na
vida não teria mais lágrimas para derramar. Mas a mãe de Norberto
continuava a resmungar pelos anos fora, como se o rio lhe viesse de
dentro sem ela o saber.
Ao
fim de anos de tanto reprimir sentimentos, emoções, lembranças,
desejos, o rio tornou-se mesmo o seu drama. Tudo o resto passou para
segundo plano. Os verdadeiros problemas desapareceram por trás do
reposteiro dos anos, deixando o rio, sozinho, imenso, inexplicável,
como uma espécie de monstro barrando os horizontes à sua frente.
O
rio era a sua ferida. O seu medo maior. O seu pesadelo. Nos Açores,
onde nascera, nunca tivera oportunidade de ver um rio. Por isso, a
irrealidade fora-lhe conquistando a alma ao longo dos anos. E o
confronto com o rio acabara por ser sempre adiado.
A
mãe de Norberto não percebia como era possível as águas correrem
numa direcção e não noutra, como era possível transbordarem, como
era possível confundirem-se na foz com o mar, como era possível
deslizarem obedientemente por entre as margens... Nada daquilo se
adequava aos seus cânones.
—
Tenho que me
vestir.... — resmungou ela, vergada aos argumentos do filho...
—
Um rio não tem nada
de especial. Não exige traje de gala!
—
Não comeces...
—
Não há mal nenhum
em andar na rua com a roupa que se anda em casa.
—
Cada um veste como
quer...
Passados
cerca de trinta minutos, mãe e filho desceram à rua, muito
compenetrados do momento que viviam. Logo que se viu fora da porta, a
mãe de Norberto olhou para ambos os lados e franziu o sobrolho ao
não ver o Opel.
—
A pé, não vou —
disse de forma categórica, enquanto Norberto hesitava sobre a
resposta que lhe daria. — Não me digas que o emprestaste ao teu
amigo...
Norberto
informou-a de que o carro avariara na Calçada de Carriche...
Recusando-se
a sair do passeio em frente à porta do prédio onde vivia, a mãe de
Norberto olhava o filho como se não acreditasse no que ouvia...,
como se a Calçada de Carriche ficasse para lá do Porto ou de
Paris...
—
Não estou a mentir
— disse Norberto. — Pensei que podíamos ir a pé porque o rio
fica mesmo aqui a dois passos... Podemos ir até ao Cais do Sodré!
—
O que é o Cais do
Sodré?! — perguntou ela, subitamente perdida. — Faz-me lembrar
uma marca de vinhos...
Norberto
olhou a mãe e percebeu que ela não estava em condições de dar um
passo. Pegou-lhe no braço e trouxe-a de volta a casa. Chegados ao
patamar do segundo andar, Norberto meteu a chave à porta e fez com
que a mãe se sentasse à mesa.
—
Amanhã, vou buscar
o carro e logo a seguir vamos ao rio — disse. Não me vou esquecer.
É a primeira coisa que farei quando me levantar. Sei que digo o
mesmo há muitos anos, mas desta vez é a sério. Se for preciso, vou
já hoje buscar o carro... Agora mesmo. Apesar de já ser tarde. Mas
não me importo. Posso ir. E, assim, amanhã, vamos ver o rio ao
nascer do dia.
A
mãe ouvia e não comentava. Ouvia e acenava ligeiramente com a
cabeça.
28
No
dia seguinte, a mãe preparou-se para sair bem cedo pela manhã, mas
teve que esperar horas até que Norberto regressasse a casa. Já
passava das três da tarde quando apareceu. Estacionou mesmo à
porta, deixou o carro a trabalhar, para não correr o risco de o
motor ir abaixo, e galgou as escadas de dois em dois degraus. Bateu à
porta, avisando que estava tudo a postos para irem ao rio.
Desceram
os dois e Norberto deixou a mãe junto ao automóvel, à espera do
lado oposto ao do condutor, enquanto ele ia pelo outro lado
desamarrar a porta que estava presa por um fio. Podia muito bem ter
resolvido aquele pormenor com antecedência, mas não lhe ocorrera.
Agora, a mãe estava fora do carro, pacientemente, de casaco e mala
na mão, na expectativa de que ele lhe abrisse a porta por dentro.
Depois
de praguejar contra a forma como Leonardo tinha por hábito prender a
porta, Norberto lá conseguiu destrancá-la.
—
Até parece um cofre
bancário! — resmungou.
O
carro avançou, por fim, sem outros incidentes, com a mãe de
Norberto absolutamente silenciosa a seu lado. Há anos que não
entrava num automóvel, que não saía da zona onde residia, que não
acompanhava o filho a parte alguma. Mesmo que quisesse dizer qualquer
coisa, não saberia o quê. Discutir com Norberto era inconveniente e
apesar da demora que tivera para trazer o carro, a verdade é que
estava a cumprir uma promessa de anos, levando-a a ver o rio. Agora,
só esperava que a viagem decorresse com normalidade e segurança.
Norberto
ia apreensivo, embora procurasse dar mostras do contrário. Não
queria que a mãe notasse nele qualquer sinal de nervosismo. Mas o
certo é que ainda não conseguira esquecer o comportamento do Opel
no dia anterior. Receava que a avaria se repetisse agora que a mãe
estava prestes a ver o rio.
Para
afastar medos, carregou no acelerador enquanto mantinha a embraiagem
a fundo, a fim de verificar se o motor respondia com prontidão.
Repetiu a manobra por duas vezes. Os resultados deixaram-no
satisfeito.
Uns
metros à frente, reparou que havia engarrafamento de trânsito. Já
não ia a tempo de escapar por outra rua e atrás de si vinham dois
carros. Embora não houvesse indícios de que pudesse estar perante
um entupimento de grandes proporções, Norberto pressentiu que algo
podia acontecer. Não fez qualquer comentário, para não chamar a
atenção da mãe. Contudo, notou pelo canto do olho que ela puxara
do terço e se pusera a rezar baixinho.
Para
desanuviar o ambiente, Norberto desatou a rir e disse à mãe que não
se preocupasse porque ele passava a vida a conduzir em Lisboa. Era
tão experiente como um taxista.
—
Mas aos taxistas
também acontecem problemas... — foi a resposta dela. — Ninguém
está livre de um azar...
—
Estamos quase a
chegar ao rio — replicou Norberto, para não afunilar a conversa.
—
Oxalá...
Dali
a instantes, Norberto reparou que a temperatura do carro estava a
subir. “Agora é que são elas”, pensou, sentindo um aperto no
peito. “Se o trânsito não anda, estamos tramados”. E reparou
também que a mãe fazia subir o tom das suas preces quase ao mesmo
ritmo da temperatura do carro. Como se pressentisse alguma coisa.
Norberto
ainda pensou desligar o motor, mas se o fizesse corria o risco de não
conseguir pô-lo de novo a trabalhar. Mantendo-o ligado, o mais
provável era que a máquina se pusesse a vomitar fumo por todos os
lados, ameaçando explodir a qualquer momento.
E
como Norberto não desligou o motor, foi isso que aconteceu, ante o
pânico da mãe.
—
Calma!, calma! —
pediu Norberto. — Não é nada de especial, estamos a dois minutos
de casa, vamos resolver o problema, isto já passa...
Só
que a mãe não o ouvia. E quanto mais o filho procurava serená-la,
mais ela pensava que a situação se agravava. Por isso, o seu
nervosismo aumentava a um ritmo incontrolável. Ao ver o fumo crescer
e adensar-se, obstruindo-lhe a visão, a mãe de Norberto sentiu que
estava a ser levada para outro mundo. E entrou em delírio.
—
É um vulcão! Um
vulcão de fogo a arder! Um fogo a arder de lava! Vamos morrer todos
queimados!! Eu devia era ter ficado em casa. Quero sair! Abram a
porta...
Aflito
para tentar retirar a mãe do automóvel, Norberto deixou-se cair por
cima dela, a ver se conseguia fazê-la sair pelo lado oposto ao do
condutor. Mas a porta tinha encravado e nem com socos dava mostras de
ceder.
—
Não chores
Norberto, que a mãe está aqui para te proteger e agasalhar —
dizia ela, embalando o filho ao colo, enquanto entoava uma canção
antiga, com voz esganiçada, e o apertava contra ela,
dificultando-lhe os movimentos. — Não tenhas medo da chuva, nem
dos trovões, nem do mar bravo, nem da ventania...
Quanto
mais Norberto esbracejava e esperneava para se libertar dos braços
da mãe, mais ela o chegava a si, mais se agarrava a ele, como se
receasse perdê-lo sob um aluimento de lava.
A
poucos metros do carro, dois homens atiravam baldes de água para
esfriar o motor, mas faziam-no de forma tão atabalhoada que acabaram
por inundar o interior do veículo através dos vidros semiabertos.
—
O mar está a galgar
a terra! — pôs-se então a gritar a mãe de Norberto. — Acudam!
Se vires uma tábua, agarra-te Norberto! Não te preocupes comigo,
que já não sirvo para nada. Nada e reza..., meu filho, que hás-de
alcançar terra! Nada e reza...
Ante
a dificuldade em libertar-se da mãe, Norberto puxou-a para o assento
do condutor e logo a seguir fê-la cair na rua, por entre uma grande
confusão de gritos, gemidos, lamentações.
Vendo-se
fora do carro, a mãe levantou-se e desatou a fugir pela rua fora,
sem reparar na porta do seu prédio, sem ver nada, sem reconhecer as
esquinas e janelas da sua própria vizinhança, sempre em frente,
sempre gritando e resmungando.
29
Ao
fim de três dias, o Opel estava de novo na estrada. Norberto falara
com um vizinho que lhe dera um jeito no motor e que se limitara a
resmungar umas sílabas sem nexo quando confrontado com a questão do
preço.
Sem
perder tempo, Norberto meteu-se no carro e avançou por Lisboa,
desalmadamente, freneticamente, de uma ponta à outra..., cheio de
palpitações!
Subia
e descia avenidas e ruas a grande velocidade, começava numa e
acabava noutra, cortava adiante, voltava atrás, à esquerda, à
direita, sempre a acelerar, sem se preocupar com o combustível que
tinha no depósito.
A
certa altura, deu consigo em Campo de Ourique. Sem saber por onde
entrar ou sair. Acontecia-lhe sempre aquilo em Campo de Ourique.
Perdia-se, irremediavelmente. Não sabia explicar porquê. Era a
única zona de Lisboa onde não conseguia associar duas ruas
consecutivas. Só era capaz de lá sair quando descobria a Saraiva de
Carvalho. Mas enquanto isso não acontecia, era um sofrimento, uma
asfixia. Andava às voltas, curvas e arrecuas, e cada minuto gasto
sem se encontrar era mais uma quantidade de palpitações que sentia.
Só
ao fim de mais de uma hora, saiu de Campo de Ourique. Como se tivesse
dezenas de horas em atraso para recuperar, voltou a acelerar. Jardim
da Estrela, Lapa, Navegantes, Janelas Verdes. O cheiro a café que
invadia as ruas entrava-lhe pelo carro dentro como um vírus
imbatível. Depois a Alexandre Herculano atravessava a cabeça da sua
cidade, saltando para a Duque de Loulé, Luciano Cordeiro,
confundindo tudo, Campo de Santana, avenida da República, EUA,
Brasil, pelo mapa fora, sem limites, galgando regras e distâncias
até à ponta dos dedos.
Lisboa
não tinha princípio nem fim. Era um amontoado doce que alastrava
pelos olhos e fazia chorar. Uma cebola. Norberto puxava de um lenço
de papel, limpava as lágrimas e continuava. Almirante Reis, Graça,
Rua Augusta, Defensores de Chaves, Parque Eduardo VII, Ceuta, eram
clarões que se acendiam na sua mente e logo desapareciam.
Pensou
em Leonardo. Como encontrá-lo agora? Em que direcção ficava a Rua
da Esperança? Dava-lhe a impressão de aquela ser a sua primeira vez
em Lisboa. Reconhecia a cidade pela cor e pelo cheiro, contudo não
se entendia com o mapa das ruas.
“Vou
estacionar”, pensou. Mas logo desistiu, não fosse o motor
recusar-se depois a trabalhar.
Perto
da Gulbenkian, um polícia fez-lhe sinal com a mão. Norberto não
ligou e acelerou. O guarda estava a pé. Não tinha hipóteses de o
perseguir. Avenida João XXI, Roma, Igreja, Gago Coutinho, Aeroporto,
Olivais, Sapadores. Tentou parar em Roma, mas já estava noutra.
Martim Moniz, Rossio, Ouro, Terreiro do Paço, o rio, lá estava o
rio, escuro, nem parecia de água, modorrento, embalando cacilheiros
entre uma margem e outra. Palpitações, sempre palpitações. O
cheiro de Almada no outro lado do rio entrava-lhe nas narinas. Era um
cheiro que obrigava a desviar o nariz, picante, intenso. Almada
cheirava a pinheiro e ossos perdidos nos areais.
Norberto
só conhecia Almada de longe. Nunca se atrevera a atravessar a ponte.
E os anos foram passando. A mãe nunca vira o Tejo. Ele nunca o
atravessara...
De
repente, lembrou-se de Mário. Um velho amigo que já não via há
uma quantidade de anos e que passava o tempo a rir-se com tudo o que
via e ouvia. Norberto precisava de estar com ele. Será que ainda ria
como antes? Precisava de estar com alguém que se risse de tudo. Das
ruas, das casas, das pessoas, das lojas, das consciências, dos
problemas. Que não pensasse em mais nada. Só no riso e na boa
disposição.
Decidiu
ir à procura de Mário naquele preciso momento. Mas por onde
começar? Primeiro tinha que se lembrar onde morava. Santa Cruz de
Benfica, não. Amadora, não. Cacém, não. Alfragide, não. Era um
primeiro andar discreto, algures, pintado de branco, com uma varanda
fechada...
Sem
nunca abrandar a velocidade, deu um pulo no assento no exacto
instante em que atravessava um sinal vermelho, bateu com a mão na
fronte e disse:
—
Sete Rios!, caraças,
Sete Rios!!
30
Norberto
seguiu para Sete Rios com a firme decisão de encontrar Mário. Não
sabia o nome da rua onde o amigo morava, nem o número da porta. Mas
estava disposto a percorrer todas as esquinas até encontrar a
varanda fechada daquele primeiro andar que resistia vagamente na sua
memória.
Chegado
a Sete Rios, parou o carro diversas vezes, para ver melhor os
prédios, os números das portas. Tentou saber de Mário junto de
diversas pessoas.
—
Mário quê?... —
perguntavam.
—
Mário... — era a
sua resposta.
Ninguém
sabia. Como se Mário não existisse. Voltava a entrar no carro e
avançava. Sentia-se frustrado, mas não desistia. “Tenho que
descobri-lo”, dizia para si mesmo.
Ao
passar pela segunda ou terceira vez junto ao Zoológico, viu
Leonardo, que estava encostado ao gradeamento perto da entrada.
Parecia à espera de uma oportunidade para ingressar no recinto sem
pagar. Aquele era o último sítio do mundo onde alguma vez
imaginaria encontrá-lo.
Parou
o automóvel sobre o passeio e fez sinal ao amigo. Depois, apitou,
pôs a cabeça fora do carro e chamou por ele, ao mesmo tempo que se
punha a desamarrar a porta do lado oposto. Leonardo entrou,
sentou-se, fazendo ranger o assento, e não disse nada.
—
Lembras-te do
Mário?... — perguntou Norberto.
Leonardo
limitou-se a responder-lhe com uma careta.
—
Estás com cara de
poucos amigos... — insistiu Norberto.
—
Desliga o motor —
disse Leonardo.
—
Passa-se alguma
coisa?
—
Estou só a
pensar...
—
Podes ajudar-me a
encontrar o Mário...
—
Queres entrar para
dar uma volta e ver os bichos?
—
Não posso. Tenho
que ver o Mário...
Leonardo
pôs-se a coçar as costas contra o assento. Ajustava-se às
saliências laterais e pressionava as partes mais afectadas pela
comichão.
—
Nunca mais resolves
esse problema — disse Norberto.
—
Como queres que eu o
resolva?
—
Um dia, ficas sem
pele...
—
Não tive comichão
enquanto andei sozinho por aí...
—
Será que és
alérgico ao Opel?...
—
A minha ideia era
roubar um animal e desaparecer daqui para fora!
—
Estás sempre à
procura de problemas.
—
Agora, só pensas
nesse Mário...
—
Podíamos passar uns
bons momentos com ele.
—
Deves estar com
palpitações...
Norberto
procurou não ouvir o comentário do amigo, carregou no acelerador e
voltou à estrada, perguntando por Mário sempre que se lhe deparava
uma oportunidade numa esquina ou semáforo.
—
Se ele mora em Sete
Rios, tinham obrigação de saber quem é — disse Leonardo.
—
Já perguntei a uma
quantidade de gente, mas ninguém o conhece. Podiam ao menos dar um
palpite — acrescentou Norberto.
—
Há quantos anos não
o vês?
—
Há uns sete ou
oito...
—
Se calhar, já não
tem a mesma aparência. Pode ter deixado crescer a barba, pode ter
emigrado, pode ter sofrido um acidente..., pode ter-lhe acontecido
tanta coisa. Nunca se sabe o que acontece a uma pessoa quando
deixamos de vê-la.
Pararam
numa bomba de gasolina. Norberto saiu do carro com ar decidido e
aproximou-se de um dos empregados no momento em que este servia um
indivíduo empertigado e sombrio. Seguindo a cena de longe, Leonardo
achou que o amigo não devia ter feito a abordagem de forma tão
ostensiva.
Ao
ver a cara de Norberto a poucos centímetros do seu nariz, o
empregado levantou o braço com a agulheta e deu um berro a
despropósito, tentando afastá-lo! Leonardo percebeu que o homem
estava com receio de qualquer coisa. O dono do veículo apressou-se a
fechar o vidro.
—
Não me venha com
tretas! — ouviu-se o empregado vociferar.
Mas
Norberto não se deixou impressionar e continuou a avançar sobre
ele, sempre a perguntar por Mário, como se o interlocutor tivesse a
obrigação de conhecer quem ele procurava. E antes que Leonardo
tivesse tempo de sair do carro para apaziguar os ânimos, o empregado
perdeu a paciência, apontou a agulheta a Norberto como uma pistola e
desatou a esguichar combustível na sua direcção, enquanto espumava
e gritava que não tinha um centavo em seu poder.
Completamente
encharcado de gasolina, Norberto só então compreendeu o perigo que
corria. Se alguém lhe atirasse um fósforo naquele momento, ficaria
reduzido a um monte de cinzas. Depois dos primeiros instantes de
perplexidade, procurou refúgio no Opel, enquanto Leonardo comentava
de forma insistente:
—
É melhor mudares de
roupa!
Mas
Norberto respondeu que nem pensar. Dentro de minutos, teria a roupa
seca.
—
E o cheiro? —
perguntou Leonardo.
—
O cheiro também
desaparece...
31
—
Vamos embora —
dizia Norberto. — Vamos embora de vez. Vamos desaparecer...
Leonardo
ouvia as palavras do amigo e sentia-se cambalear por dentro.
—
Desaparecer para
onde?... — perguntou.
—
Para onde calhar...
— respondeu Norberto.
—
Vai ser sempre a
mesma coisa. É sempre assim... Quando se desaparece num sítio
aparece-se noutro a seguir. Não podes simplesmente fugir e pensar
que resolves tudo, não vale a pena.
—
Espanha! Espanha!...
— cantarolava Norberto, enquanto acelerava pela Marginal de
Cascais. — Espanha é já ali adiante!
Leonardo
pôs-se a cantarolar com ele, só para não ficar à parte. Sempre
contribuía para alegrar o ambiente.
Pouco
depois, ambos abriram os vidros, deixando entrar o crepúsculo para
dentro do Opel, que seguia como uma nave em direcção ao tempo
desconhecido. Com os braços de fora, cantavam “Espanha, Espanha!”,
até à rouquidão.
—
E se a polícia nos
manda parar? — perguntou Leonardo.
—
Já não há
polícia! — foi a resposta do companheiro. —Já não há
polícia!! Agora, só paramos em Espanha.
E
os dois entoavam o novo refrão, num berreiro que praticamente
dispensava qualquer melodia, “Já não há polícia!, já não há
polícia!” A seguir “Espanha!, Espanha!” e por aí fora,
navegando na marginal junto ao rio que se diluía nas horas.
—
Estou cheio de calor
— disse Norberto.
—
É da gasolina! —
respondeu Leonardo, prontamente.
—
Deixa-te disso.
—
O carro pode
incendiar-se.
—
Não digas tolices!
—
Estou a ouvir um
barulho...
—
Qual barulho?
—
Deve ser uma peça
que saltou do motor.
Norberto
apressou-se a encostar à berma da avenida. Não podia correr o risco
de ficar sem carro aos poucos, aos pedacinhos, enquanto as partes iam
caindo ao longo do percurso. Tinha que chegar a Espanha.
Independentemente da direcção que seguia.
Saíram
ambos do carro, abriram o motor, que continuava a trabalhar, e
puseram-se a analisar a situação.
—
Deve ter sido uma
vela que se desprendeu... — alvitrou Leonardo.
—
Não me distraias —
pediu Norberto, com as duas mãos pousadas na grelha frontal do
veículo, enquanto se inclinava para a frente, procurando ver melhor
os pormenores da máquina.
—
Não te esqueças
que tens gasolina em todos os poros... — avisou Leonardo. —
Qualquer faísca pode dar cabo de ti de um momento para o outro.
Mas
Norberto estava longe de dar ouvidos ao amigo. E pôs-se a mexer no
motor, aqui e ali, certificando-se de que todas as peças estavam no
sítio, tampas, anilhas, tubos...
—
O radiador está
esquisito... — comentou Leonardo.
Norberto
respondeu-lhe com um gesto de mão, pretendendo dizer que já bastava
de tolices, o que fez com que Leonardo voltasse para dentro do Opel,
furioso consigo mesmo.
Ao
fim de cerca de cinco minutos, Norberto fechou o motor com estrondo,
sentou-se no carro e disse bem alto para quem o quisesse ouvir:
—
Daqui a pouco
estamos em Barcelona!
Atravessaram
Cascais a toda a velocidade, gritando com os punhos fechados
estendidos para fora do carro — já não há polícia!, já não há
polícia!!
Passada
a Boca do Inferno, Norberto e Leonardo entreolharam-se, mudos. O
carro deslizava com o ruído das ondas. Impelido pelo vento dos dias
que não acabam. E Norberto exclamou num grande brado:
—
Espanha à vista!
32
Pararam
uns metros adiante, junto à Praia do Guincho, sem desligar o motor.
Sempre prontos a avançar para nova etapa, nova cidade, novo país.
Mas
sentia-se que a viagem tinha chegado ao fim. Estava escrito nos
olhos, que a escuridão fazia brilhar nas ondulações sem rumo.
Depois de uns milhares de quilómetros percorridos, todas as
descobertas terminavam.
—
A gasolina deve
estar nas últimas — disse Leonardo.
—
Ainda dá para uma
volta na praia! — respondeu Norberto.
Leonardo
não conseguiu conter uma gargalhada. E disse que o Opel não andaria
mais do que meia-dúzia de metros no areal.
Norberto
não gostou da insinuação e replicou que Leonardo não entendia
patavina de automóveis. Estava farto de andar no Opel, de viajar com
ele para todo o lado, de enfrentar as situações mais imprevistas, e
nem assim confiava nas suas capacidades.
—
Às vezes, não sei
que ideias tens na cabeça... — desabafou Norberto, que aproveitou
para sair do carro e ajudado pela luz dos faróis se pôs a estudar
os acidentes do percurso arenoso à sua frente.
—
Quando se chega a um
certo ponto da viagem, não dá para desistir, nem para recuar —
disse Norberto a meia voz, como se tentasse convencer-se a si próprio
de alguma coisa que o inquietava. Depois, voltou-se na direcção do
mar e pôs a mão em pala sobre os olhos, tentando ver para além da
escuridão que o encandeava. O frio salgado fê-lo apertar a camisa
contra o corpo.
Ao
sentar-se de novo no carro, voltou-se para Leonardo e disse
textualmente:
—
Vou provar-te que
este carro é capaz de andar na praia!
—
Só te falta dizer
que esta carroça velha é capaz de nos levar ao Cabo Bojador! —
respondeu Leonardo.
—
Nem imaginas o que
te espera.
—
Devias pensar melhor
no que te vais meter...
Norberto
não esteve com grandes hesitações. Enquanto Leonardo ia fazendo
avisos, carregou diversas vezes no acelerador e, por fim, arrancou em
direcção à noite escura, dando a impressão de que o carro boiava
no vazio. Depois, o veículo aterrou. Bateu com as quatro rodas no
chão, fazendo gemer os amortecedores e a carroçaria, que mais
parecia uma lata de conserva gigante a desengonçar-se.
—
Isto é um
verdadeiro tanque de guerra! — exclamou Norberto em tom de desafio.
— E ainda tens muito para ver.
—
Não exageres —
pediu Leonardo, a meia voz, agarrando-se ao porta-luvas.
—
Quero lá saber... —
replicou Norberto.
E
foi por ali adiante, quase nada vendo à sua frente, aos solavancos,
seguindo na direcção ao mar, guinando à esquerda e à direita,
como se fugisse às balas da polícia, sempre aos gritos, às
gargalhadas, aos urros.
—
Ninguém me apanha!
— vociferava. — Ninguém me apanha!!
O
carro derrapou durante uns ligeiros segundos numa elevação de
areia, mas Norberto não deu sinais de fraquejar. Forçou o
acelerador e continuou, pela areia fora, parecendo que deslizava numa
auto-estrada de Espanha.
—
Vamos ficar
enterrados na areia — comentou Leonardo.
E
foi o que aconteceu. O Opel sucumbiu ao piso traiçoeiro do areal e
depois de diversos gemidos e contorções, recusou-se a prosseguir
viagem.
Norberto
não queria acreditar no que estava a acontecer:
—
Deve ser alguma
avaria. Este carro tem a obrigação de andar na areia sem problemas.
—
Pronto — afirmou
Leonardo. — Não vale a pena estares com esperanças. A tua sorte é
estarmos longe do mar.
Em
silêncio, Norberto abandonou o veículo e foi verificar o sítio
onde as ondas rebentavam. Logo a seguir, voltou para o carro e disse:
—
Vês como o motor
continua a trabalhar que nem um relógio?...
—
Desliga-o, para não
gastar gasolina.
Mas
Norberto pôs-se a acelerar desesperadamente, recusando-se a aceitar
as fraquezas do seu Opel.
Leonardo
ainda saiu do seu lugar e foi dar uns empurrões na traseira do
carro, a ver o que acontecia, mas o seu esforço não resultou.
Ao
fim de uns minutos, a situação não deixava margem para dúvidas. O
Opel tinha uma das rodas traseiras enterradas na areia até quase
meio metro de profundidade.
Norberto
e Leonardo sentaram-se no carro, sem saber o que dizer um ao outro.
—
Amanhã,
resolve-se... — murmurou Norberto, entredentes, ao fim de uns
minutos.
—
Achas que podemos
dormir descansados?...
—
Com a escuridão,
ninguém nos vê.
Cerca
das quatro da manhã, Leonardo acordou, sobressaltado, com o barulho
das ondas a bater na parte da frente do carro. Poucos minutos depois,
Norberto também despertou.
—
Chegámos a Espanha!
— disse.
—
Temos que sair daqui
— replicou Leonardo. — A maré está a encher.
—
Não me vou embora
sem o Opel — sentenciou Norberto.
Leonardo
desatou a rir, mas o amigo olhou-o com o ar mais sério deste mundo,
enquanto adiantava:
—
Não és obrigado a
ficar...
—
Vamos pedir ajuda —
propôs Leonardo.
—
A esta hora, não
temos hipóteses...
Leonardo
espreitou pela janela do seu lado e reparou que o mar já tinha
subido até praticamente metade da porta.
—
Temos que fugir! —
disse.
—
A maré vai vazar...
— respondeu Norberto. — Mais tarde ou mais cedo, vai vazar.
Amanhã, alguém nos há-de ajudar. Alguém nos há-de emprestar uma
corda para rebocarmos o carro. À noite, tudo parece mais negro. Não
te preocupes...
—
O problema é que
agora a maré está a encher! — argumentou Leonardo. — Não
percebes que é perigoso?!
—
És um medricas!
—
Isto é uma loucura.
—
Vamos até ao fim...
FIM