1



Fecha a porta com força — disse Norberto para Leonardo, logo depois de este ter entrado no carro.

Leonardo obedeceu, mas a porta não. Bateu e voltou a abrir-se. Mais um empurrão seria suficiente para a fazer em pedaços.

Norberto saiu do carro, tirou um cordel da bagageira e pediu ao amigo que prendesse a porta por dentro.

Leonardo amarrou uma das pontas do cordel ao manípulo da porta, passou o fio por trás do seu assento, deu uma volta sobre si mesmo, pôs-se de joelhos, esticou-se e foi amarrar a outra ponta no manípulo da porta traseira do lado oposto àquele em que se encontrava. Retesou bem o fio, segurando-o com três nós apertados.

Está resolvido — disse.

Norberto não ligou. Habituara-se aos pequenos problemas do Opel branco e enferrujado que possuía há anos e que representava tudo na sua vida, para além da mãe, com quem residia num pequeno apartamento da Rua da Rosa.

Leonardo, seu único amigo, tinha um quarto alugado na Rua da Esperança e uma filha que raramente via.

O carro era onde se encontravam com regularidade. Todas as manhãs, os dois saíam de casa, pontualmente, e dirigiam-se para o Opel, como quem ia para o emprego, embora nem um nem outro trabalhasse. Encontravam-se no automóvel, apenas. Se havia gasolina, davam umas voltas por Lisboa. Se não, deixavam-se estar sentados no veículo, independentemente do sítio onde se encontravam, e ficavam para ali a conversar durante horas.

Às vezes, Norberto ia almoçar a casa, outras vezes não. Quando o fazia, trazia uma sandes para Leonardo, que permanecia no carro à espera. Ambos fumavam muito.

Ao despedirem-se, à noite, deixavam o automóvel onde calhava. Para poupar gasolina, Norberto nem sempre o trazia até à porta de casa. Um veículo no estado em que o seu se encontrava não corria o risco de ser roubado. A sua aparência repelia mais do que atraía. O ladrão que o levasse teria mais complicações do que vantagens. No dia seguinte, os dois faziam a pé o caminho até ao sítio onde tinham deixado o Opel na noite anterior. Sempre era uma maneira de desentorpecerem as pernas.

Tens aí um cigarro? — perguntou Norberto, distraído a olhar para as sombras da avenida Almirante Reis.

Leonardo estendeu-lhe um maço amarrotado de SG Gigante com dois cigarros dentro.

O dia promete... — resmungou Norberto.

A gente desenrasca-se — comentou Leonardo, recostando-se no assento e acrescentando que tinha dormido mal durante a noite. Tivera uma comichão que o deixou todo vermelho de tanto se coçar. Levantou a camisa e mostrou uma parte das costas, mas Norberto mal olhou. Estava absorto, distante, preocupado.

Vamos ter que fazer qualquer coisa — acrescentou Norberto.

Não estejas com essa cara — replicou o amigo.

Hoje é uma coisa, amanhã é outra...

O que importa é não desanimar.

Norberto acendeu o cigarro e aproveitou o silêncio para deixar morrer a conversa. Tragou, aguentou a respiração e, por fim, expeliu o fumo.







2



Estes gajos só chateiam — comentou Norberto ao ver um carro da polícia estacionar perto da Cervejaria Portugália. — Pensam que é tudo deles.

Temos gasolina para ir a algum sítio? — retorquiu Leonardo.

Isso é o menos. A rua ainda desce um bocado.

É melhor estarmos quietos.

Eram onze e trinta da manhã. Norberto e Leonardo tinham o dia todo à sua frente. Podiam fazer o que quisessem. Conversar, olhar as pessoas que passavam, reparar em quem entrava e saía dos prédios, observar os novos modelos de carros, seguir os movimentos da polícia, contar o tempo que os semáforos demoravam a mudar, analisar com minúcia as feições dos transeuntes, imaginar as vidas deste e daquele. Não lhes faltava com que ocupar o tempo.

Tenho aqui uma moeda de dois e quinhentos das antigas — disse Leonardo, que esvaziara a carteira no colo e se pusera a contar o dinheiro de que dispunha.

Norberto olhou de soslaio, mas não fez comentários. Não lhe apetecia falar.

Talvez valha alguma coisa — acrescentou Leonardo. — Há dias, ouvi dizer que um fulano vendeu uma moeda por mais de cem contos. Mas devia ser uma bastante mais antiga do que esta.

Tudo somado, Leonardo tinha em sua posse 625$00, sem contar com a moeda antiga de dois e quinhentos.

Tenho que comprar um fato... — afirmou Leonardo ainda. — Um fato para ocasiões especiais...

Já imaginaste quantos carros passam aqui durante um dia inteiro? — perguntou Norberto. — Estão sempre a passar... Acho que nem se consegue contá-los. Porque uns andam numa direcção e outros noutra. Quantos litros de combustível consomem por dia só nesta avenida?

Há pedaço, saiu daquele prédio uma rapariga que olhou muito para ti... — interrompeu-o Leonardo. — Deu a sensação de que te conhecia.

Seria interessante saber a quantidade de combustível que Lisboa inteira gasta num dia.

Do carro da polícia que havia estacionado junto à Cervejaria Portugália saíram dois agentes. Um deles deu uns passos na direcção do carro de Norberto e este teve um aperto no coração. Acontecia-lhe aquilo sempre que um polícia se aproximava dele. Houve tempos em que estremecia só de vê-los à distância, mas aprendera a dominar-se. Contudo, ainda hoje, se algum agente o abordava, ficava imediatamente nervoso e inquieto, como se tivesse algo a esconder.

Ao ver o guarda dirigir-se para o seu carro, Norberto percorreu mentalmente os bolsos e os compartimentos do veículo, tentando lembrar-se onde tinha guardado os documentos. Nunca os punha no mesmo sítio. Por isso, às vezes, não se lembrava do lugar exacto onde os pusera da última vez.

Todavia, o guarda não chegou até junto dele. Parou a poucos centímetros de distância do carro que estava estacionado à frente e pôs-se a observá-lo, por dentro, com atenção. Punha a mão em pala diante dos olhos para os proteger da luz que o vidro reflectia e espreitava em todas as direcções. Concluída a inspecção ao interior do veículo, o polícia contornou-o, devagar, metodicamente, como se pensasse com os pés, e parou junto ao porta-bagagem. Pressionou a fechadura com a mão e viu que não abria. A seguir, dirigiu-se ao carro de Norberto, perguntou a Leonardo se por acaso vira o proprietário do outro veículo.

No assento do lado, Norberto não conseguia disfarçar a angústia provocada pela proximidade do agente. Sentiu-se mais tranquilo quando Leonardo respondeu que não, que não vira o proprietário do carro, o que fez com que o guarda se afastasse lentamente, com cara de desconfiado.







3



Nesse mesmo dia à noite, os dois ainda se encontravam dentro do carro. Não tinham ido a parte alguma. Não tinham feito nada. Só tinham estado à espera que o tempo passasse por baixo dos seus traseiros enterrados nos assentos.

Meteram 2.425$00 de gasolina e seguiram na direcção da marginal de Cascais. Gostavam de avançar ao longo do rio para se perderem na estrada que acompanhava o oceano. Era como se bebessem a luz nocturna que fazia com que o céu continuasse azul pela noite dentro.

O mês de Maio, em Lisboa, era propício a serões prolongados. Como Norberto e Leonardo não tinham o hábito de frequentar restaurantes nem cafés (excepto para comprar tabaco), ficavam geralmente a conversar dentro do automóvel, ou faziam-no deslizar, pacatamente, até queimarem as últimas gotas de combustível. Se não conseguiam chegar ao destino, encostavam à berma da estrada.

A escuridão protegia-os. Por isso, sentiam que tinham mais liberdade. Durante o dia, eram facilmente olhados. Vistos. Marcados. O que não lhes convinha. Para que ninguém soubesse do seu modo de vida. A noite, com os seus candeeiros de rua, ou com as suas incontáveis estrelas, era uma espécie de cobertor que os aquecia.

Quando saíam da cidade, a praia do Guincho era um dos seus refúgios preferidos. A bravura das ondas atraía-os. Norberto punha-se a olhar para as estrelas que havia no céu e dizia que o seu sonho era viver no espaço, quanto mais longe da Terra mellhor.

­­— Dizem que há biliões e biliões de estrelas... — explicava — e, se calhar, também há biliões de universos. O nosso universo deve ser apenas um entre biliões. E estes devem fazer parte de um mega-universo que, por sua vez, deve ser apenas um entre biliões de mega-universos. Só assim faz sentido falar em infinito...

Leonardo não lhe deu resposta. Quando o amigo se punha a divagar sobre outros mundos, ele preferia ouvir, ou simplesmente resmungar sílabas sem nexo. Às vezes, a sua cabeça perdia-se, fazia confusão, atrapalhava-se. Então, Leonardo cheirava o sal da maresia que enchia tudo à volta e inspirava o ar para sentir melhor que fazia parte da paisagem.

Norberto continuava entregue aos seus raciocínios. E seguia em frente, como se estivesse muito bem sentado na cabina de uma nave espacial com capacidade para viajar através das poeiras cósmicas. Fazia contas atrás de contas, imaginando-se detentor do conhecimento total. Biliões de mega-universos eram muita coisa. Como se cada um desses mega-universos fosse um dos muitos grãos de areia que se perdiam na escuridão da praia. Nessas alturas, o seu corpo parecia mais leve sobre o solo, quase a evaporar-se.

A solução seria construir um veículo espacial que se deslocasse à velocidade do pensamento. Se o conseguisse, Norberto seria capaz de viajar por distâncias impossíveis, realizando um sonho de gerações. Havia de alcançar buracos negros, verdes, amarelos, cor-de-rosa... e fruir a imensidão do espaço sem constrangimentos. Por fim, depois de anos e anos vagueando pelo infinito, o seu corpo havia de consumir-se em chamas e desaparecer nos múltiplos pontos que abriam portas a outros mundos para lá dos mundos.

Os biliões de estrelas que conseguimos contar equivalem aos primeiros números que uma criança balbucia. São apenas os passos iniciais...

Já me sujei outra vez! — interrompeu Leonardo, a despropósito. — É sempre a mesma coisa. Como fui fazer esta porcaria?

Era inevitável. Leonardo encostava-se a uma porta, a uma parede, a uma vitrina, sem dar conta de que o fazia, e lá lhe aparecia uma nódoa nas calças ou na camisa. Logo a seguir tinha que ir a casa mudar de roupa porque não era capaz de passar muito tempo com uma peça manchada.

É demais — reagiu Leonardo. — Não tenho emenda. Sou assim desde pequeno. Estavam sempre a repreender-me. Não havia roupa lavada que desse conta do recado. Se calhar, é por isso mesmo que não resolvo o problema.

Isso é o menos — retorquiu Norberto, voltando ao seu tema favorito. — O mais urgente é abandonarmos esta casa fechada, o planeta Terra, derrubarmos paredes, portas, janelas, e partirmos em busca de quem nos espera há milhões de anos. Afinal, estamos acompanhados, de todas as formas, em todos os sentidos, em todas as dimensões. O nosso destino não pode ser mirrar, aqui, definhar para sempre, com a poesia do cosmos à frente dos olhos.







4



É melhor irmos andando — disse Leonardo, que não se sentia bem só de pensar na nódoa que tinha na camisa. — Oxalá a gasolina dê para chegar a Lisboa...

Em termos cósmicos, é indiferente estarmos na praia do Guincho ou em Lisboa — argumentou Norberto. — É uma distância insignificante. O que tu queres é ir para casa mudar de roupa!

Achas bem que eu esteja de camisa suja?

À noite, ninguém repara. E se alguém reparasse não haveria problema. Podes sempre comportar-te como se não soubesses que tens aí uma nódoa...

Falas assim porque a camisa não é tua! — desabafou Leonardo.

Estás na praia. Não há aqui ninguém para ver se estamos limpos ou sujos.

Não me sinto bem...

Podes despir-te!

E, de repente, Leonardo teve vontade de chorar. Não por causa da nódoa na camisa, como é óbvio, mas apetecia-lhe chorar. Às vezes, dava-lhe aquilo. Sem motivo aparente, ou por uma banalidade qualquer, vinham-lhe as lágrimas aos olhos. Ele escondia-as, distraía-as, enganava-as — tossindo, por exemplo — o que lhe permitia dar a ideia de tudo não passar de um princípio de constipação. Por vezes, pensava sobre o que faria no dia seguinte e isso era suficiente para lhe devolver a serenidade. Porque no dia seguinte ele nada teria que fazer para além de estar no carro com Norberto, a olhar para lado nenhum. Outras vezes, a sua comoção era um sinal de que algo estava para suceder, algo indefinível... Aceitava o que tinha porque não lhe restavam outras hipóteses. A noção da realidade comovia-o. A noção pura do que possuía e não possuía. A sua segurança estava na amizade com Norberto. No quarto onde residia também não o chateavam. Não se lembrava da mãe e do pai só tinha uma lembrança vaga de o ver chegar a casa sempre tarde. Um dia, soube que tinha sido encontrado sem vida. Foi despedir-se dele, na capela mortuária, onde não havia vivalma, para além de uma tia, da qual perdera o rasto. À saída do cemitério, encontrou uma mulher gorda, de rosto pálido, com óculos de fundos de garrafa, que o fixava intensamente e que lhe sorria de forma desabrida. Leonardo não a conhecia de parte alguma. Por isso, atravessou a rua, cheio de pressa, para se livrar daqueles olhos que o fulminavam. Mas a mulher foi-lhe no encalço, perseguindo-o como uma cadela faminta, por ruas e becos, corredores de metro, paragens de autocarro, até o obrigar a ceder e sentar-se num banco do Jardim da Estrela, onde acabaram por tomar conhecimento amiudado. Tempos depois, soube que a gorda estava grávida. Discutiram muito. A mulher insistiu sempre que Leonardo era o pai. Mas ele teve dificuldades em aceitar o facto. E quando a filha nasceu, andou desaparecido por uns tempos.

Mais tarde, refez a vida, passando todo o seu tempo no Opel do amigo.

Vamos andando — disse Norberto. — Está a chuviscar.

Meteram-se os dois no carro e regressaram a Lisboa. Aquela era a única maneira de tranquilizar Leonardo.

Na zona da Parede, havia um acidente na marginal. Três carros tinham chocado, obstruindo a via pública. A vibração do impacto ainda pairava no ar. Os veículos tinham batido em cadeia, provavelmente devido a uma travagem brusca do que ia na frente. Não havia sinais de polícia, nem de ambulância ou de bombeiros. Norberto teve que parar. Mas não saiu do automóvel.

É melhor esperar que apareça mais alguém... — murmurou, impressionado com a violência do embate.

Leonardo estava mudo. De semblante impenetrável. Por causa do acidente e por causa da nódoa na camisa...

Outros carros foram parando atrás do de Norberto. Mas ninguém saía para ver o que se passava. Era como se formassem bicha numa passagem de nível.

Norberto decidiu mexer-se. E Leonardo fez o mesmo logo que conseguiu desprender o cordel que segurava a porta do seu lado.

Está ali uma cabeça! — disse Leonardo, com um arrepio na coluna.

Qual cabeça?... — perguntou Norberto, procurando desdramatizar a situação.

Podes crer!! Uma cabeça loura...

Num dos automóveis não se via qualquer ocupante. Dava a ideia de o condutor se ter sumido logo a seguir ao choque. No último veículo, estava uma mulher imobilizada sobre o volante e no do meio, que tinha a porta aberta, encontrava-se um homem com a parte superior do corpo caído sobre a estrada. Era gordo, usava bigode e não se fartava de falar, por entre golfadas de sangue que lhe saíam da boca, enquanto o corpo lhe escorregava aos poucos pelo assento:

Está combinado, amanhã apareço com certeza. Pode estar descansado. Já vou, isto está mesmo a acabar, é só mais um minutinho... Tenha paciência, não trabalho mais com esse fulano. Nem pense. E ele nem se atreva a vir falar comigo! Por favor, ó senhores, não me vasculhem a mala. Deixem-me os bonecos em paz. Podem dizer-me como apareci aqui sem mais nem menos? Tenho saudades tuas, querida...

Naquele instante, chegaram duas ambulâncias e três carros da polícia. Norberto teve um ligeiro susto, mas depressa se recompôs. Os agentes saíram precipitadamente e afastaram os curiosos do local.

Tenho a certeza de que vi uma cabeça loura — insistia Leonardo, enquanto entrava no velho Opel, visivelmente perturbado com a cena que acabara de presenciar.

Não temos cigarros — disse Norberto, passados cerca de vinte minutos, quando a via foi finalmente desimpedida.







5



No dia seguinte, ficaram sem gasolina na rua do Conde Redondo. Mas Norberto aproveitou a descida e não deixou que o carro parasse. Antes que o veículo perdesse a embalagem, fê-lo subir o passeio e travou a curta distância da parede, poucos metros antes de uma estação de combustível. Por pouco não esmagou um homem alto, com cerca de quarenta anos e cara de poucos amigos. O homem continuou o seu caminho, mas olhava para trás com insistência, com um ar cada vez mais ameaçador.

Aquela cara não me é estranha... — disse Leonardo.

Nesse preciso momento, ouviu-se um forte estrondo na parte traseira do veículo. O homem com cara de poucos amigos tinha atirado uma pedra que bateu contra o automóvel.

Norberto saiu do carro e foi verificar se havia alguma amolgadela na carroçaria. O carro já tinha a sua idade, mais mossa menos mossa.

Entretanto, o homem prosseguia a subida da rua do Conde Redondo, em corrida acelerada, denotando uma frescura física invulgar para a sua idade. De vez em quando, voltava-se, dava um berro que se ouvia em toda a zona e desferia um pontapé no ar. Parecia praticante de karaté.

Achas que podemos deixar aqui o carro por uns tempos? — perguntou Norberto a Leonardo, logo que voltaram a ocupar os seus assentos.

Vendo bem as coisas, passamos a vida sentados num automóvel — disse Leonardo. — Como nós, só os taxistas. A diferença é que não temos clientes. Mas andamos sempre para um lado e para o outro. Não fazemos outra coisa.

Isso depende do ponto de vista — respondeu Norberto. — Julgo que fazemos bastante. Por acaso, neste momento, sinto-me bastante cansado.

Sabes que a nódoa que ontem me apareceu na camisa era de alcatrão?... É uma nódoa lixada de tirar.

Aquele tipo que atirou a pedra fazia-me lembrar um fulano que uma vez vi em casa de um vizinho meu...

Leonardo argumentou que os taxistas tinham uma vida tramada porque nunca sabiam quem metiam no carro. Hoje podia ser um jornalista, amanhã um professor, agora um traficante, logo uma beata. Os taxistas não tinham liberdade. Só iam onde as pessoas queriam que fossem. Estavam sempre condicionados. O que já não acontecia no seu caso. Porque eles podiam ir a todo o lado, desde que tivessem gasolina para isso. E podiam sempre dizer o que lhes apetecia. Ou não dizer coisa alguma...

O pior é quando os degolam ou abatem a tiro — afirmou Leonardo.

Também nos pode acontecer o mesmo – replicou Norberto. — Imagina que aquele fulano do karaté nos enfrentava com uma pistola em vez de nos atirar uma pedra.

É sempre um risco.

De repente, Norberto lembrou-se de onde o conhecia. O fulano estivera uns meses a trabalhar como carteiro na sua zona. Mas ouvira-se dizer que fora despedido porque não entregava a maioria das cartas aos destinatários. Aliviava a carga, vazando sobrescritos, encomendas e avisos para os caixotes de lixo.

Na opinião de Leonardo, os carteiros ainda estavam em pior situação do que os taxistas. Porque além de terem que fazer o que lhes mandavam, viam-se obrigados a andar a pé.

De qualquer maneira, o tipo não tinha nada que nos apedrejar — disse.

Nesse instante, uma cabeça entrou pela janela do carro do lado de Norberto e este verificou que o karateca estava de volta! Ficou incapaz de falar. O regresso do indivíduo alterava a leitura que inicialmente fizera da situação. Era como se a pedra, afinal, não tivesse sido atirada contra o seu carro. Porque o homem podia ter voltado com a intenção de pedir desculpa. Ou para o agredir com outra pedra, desta vez directamente na cabeça.

Algum de vocês tem aí um cigarro? — perguntou o karateca.

Norberto e Leonardo permaneceram uns segundos em silêncio, tentando avaliar a situação. Se dissessem que não, podiam provocar a ira do fulano e apanhar com outra pedra. Se respondessem que sim, estariam a ceder demasiado perante alguém que ainda há poucos minutos os tentara agredir.

Para ganhar tempo, Leonardo pôs-se a procurar nos bolsos. E depois verificou no porta-luvas.

Norberto achou que era mais seguro não ficar onde estava. Saiu do carro e encostou-se ao lado exterior da porta, enquanto o karateca denotava cada vez mais inquietação.

Quando Leonardo disse que não havia cigarros, Norberto meteu a mão por dentro do blusão e puxou um do bolso da camisa. Em movimentos lentos, partiu-o ao meio, deu uma parte ao karateca, meteu o outro pedaço entre os lábios e puxou do isqueiro. Ficaram os dois a fumar, olhando um para o outro. Leonardo tinha saído do carro, mas evitara aproximar-se para não interromper os acontecimentos. Ao reparar, contudo, que Norberto e o karateca se limitavam a fumar, sem trocarem palavra, contornou o veículo e foi juntar-se a eles.







6



Ao fim de uns bons dez minutos, o karateca disse que se chamava Rui e convidou-os para uma festa em casa de uns amigos.

É aqui mesmo na rua de S. Bento — adiantou Rui. — Juntamo-nos e tomamos uns copos...

Norberto respondeu que tinha umas coisas a fazer, mas que ia ver se conseguia dar lá um salto.

Se quiserem, vamos agora — insistiu Rui.

Leonardo e Norberto afastaram-se uns metros e puseram-se a conferenciar, em voz baixa.

Não estou a perceber este gajo... — disse Norberto.

Podemos sempre ir ver se aquilo dá alguma coisa — respondeu Leonardo.

O tipo é estranho...

O que interessa é o pessoal que vai aparecer por lá. Pode ser uma oportunidade para conhecermos alguém...

Responderam que sim, que iriam, mas não se podiam demorar. Iam só dar uma vista de olhos pelo ambiente e depois se veria.

Fecharam o carro e partiram os três a pé para a rua de S. Bento. Entretanto, o telemóvel de Rui tocou e ele deixou-se atrasar uns metros para falar à vontade. Mal tinha desligado o aparelho, nova chamada. Desta vez, até deu uns saltinhos para trás e abrigou-se numa porta enquanto falava.

Não se consegue ouvir uma palavra do que ele diz — comentou Leonardo para Norberto, quando ambos optaram por fazer um compasso de espera. — Com o barulho da rua, não percebo como consegue falar. Até dá a ideia de que não está ninguém do outro lado.

O fulano mexe comigo — disse Norberto.

Quando voltou para junto dos outros dois, Rui comentou que já estavam mais de trinta pessoas na festa.

Vai ser divertido — acrescentou.

Chegados à rua de S. Bento, bateram na porta errada. Uma velha corcunda informou-os de que ali não havia qualquer festa. Rui tinha-se enganado na casa. À segunda, acertaram.

O apartamento estava a abarrotar de gente que bebia e conversava por tudo quanto era canto. A música fazia estremecer as paredes da casa. Em poucos segundos, Rui foi entrando, furando, contornando, até desaparecer por entre o fumo e a confusão de corpos.

Norberto e Leonardo preferiram deixar-se ficar na zona da porta de saída, enquanto estudavam o ambiente. Caso houvesse necessidade, não teriam quaisquer dificuldades em escapar. Nunca se sabia o que podia acontecer numa festa do género. Foram buscar duas cervejas e encostaram-se à parede de um dos cantos de entrada. A menos de um metro à direita de Leonardo, estava um rapaz sentado no chão e no seu colo uma rapariga com a pele em cima do osso entretinha-se a chupar-lhe o pescoço. Apertava-o e puxava-o para si, saltando de excitação sobre as pernas dele.

Mesmo à frente de Norberto, um fulano tossia convulsivamente. Depois, apareceu outro, que o abraçou por trás e se pôs a fazer movimentos eróticos de encontro às suas nádegas.

Não me forces! — disse o homem que tossia, visivelmente aborrecido.

Muitos dos presentes dançavam ou pretendiam fazê-lo. Mantinham-se agarrados uns aos outros como se receassem que a casa desabasse a qualquer momento.

Uma rapariga mestiça aproximou-se de Leonardo e perguntou-lhe ao ouvido, em altos berros, se ele queria ir dar uma volta com ela.

Leonardo hesitou na resposta. Não queria deixar Norberto sozinho. E também não conhecia a rapariga nem adivinhava as suas intenções. Tinha uma noção de perigo que, geralmente, o fazia recuar em momentos dúbios. Podia haver mais alguém envolvido no esquema e ele ser apanhado desprevenido. Tudo dependia de vários factores. Onde iriam dar uma volta? Por quanto tempo? A pé ou de carro?...

Tens número de telefone? — perguntou Leonardo. Ela não percebeu e ele repetiu a pergunta.

Vai-te lixar! — foi a resposta dela, enquanto lhe tirava a cerveja da mão, pondo-se imediatamente a bebê-la e agarrando-se a um duro que cirandava perdido por ali.

A confusão alastrava no apartamento, à medida que iam chegando mais pessoas. Viam-se portas a abrir e fechar a todo o instante e gente que procurava recantos mais pacatos.

De súbito, um homem chamou a atenção dos presentes porque se começou a despir enquanto dançava, provocando um coro de aplausos à sua volta.

O entusiasmo cresceu quando ele empunhou no ar uma faca enorme. Brandia a lâmina com uma agilidade verdadeiramente felina diante dos rostos estonteados que o rodeavam. E imitava sons animalescos, ao ritmo da música que o sacudia.

Corta! Corta! — gritavam algumas vozes em uníssono.

Mata-me!, mata-me!, por favor — ouviu-se uma jovem suplicar. — Dá cabo de mim! — insistia ela elevando a voz acima da trepidação da música. — Não tenhas piedade!

O homem não ligou. Segurou o cabo da faca com as duas mãos, apontando a lâmina para a frente e estendendo os braços à altura do peito.

A dado momento, um dos rapazes que estava mais perto do bailarino e que vivia a cena com mais agitação foi empurrado por alguém que tinha sido empurrado, por sua vez, por alguém atrás dele, acabando o da frente por ser atingido num olho pelo bico da faca.

Ouviu-se um grito e logo a seguir gerou-se o caos, com várias pessoas ao mesmo tempo a tentar socorrer a vítima.

Alguns que não viram o que tinha acontecido e não perceberam o que se passava puseram-se a gritar e a tentar alcançar a porta de saída, como se fugissem de um incêndio.

Tenham calma! — ouvia-se dizer. Mas a histeria era cada vez maior.

No meio de todo o barulho e precipitação, Norberto e Leonardo aproveitaram para desaparecer.

Chegados ao exterior, Norberto apressou-se a dizer que não se sentia bem...

Será que a cerveja te caiu mal? — perguntou Leonardo.

Não sei... — respondeu Norberto. — Penso que é do coração. Estou com palpitações.







7



Naquela tarde, andaram a pé, porque o carro não tinha combustível.

Caminhar faz bem ao coração, às pernas, à cabeça — disse Leonardo.

Não me falta muito e estou com os pés para a cova... — resmungou Norberto.

Depois de andarem uns metros em silêncio, Leonardo disse que não valia a pena irem a festas porque estas eram sempre a mesma coisa.

É bebida e confusão a mais — disse.

Pois... — acrescentou Norberto como se o assunto lhe passasse à margem.

E quando se conhece alguém com interesse vem-se a saber depois que a verdade é outra — respondeu Leonardo. — Em público, as pessoas nunca mostram a sua verdadeira personalidade. Há muito artificialismo....

Não é só nas festas que há artificialismo — sublinhou Norberto. — É sempre. Em todo o lado, a toda a hora. Mas tem que ser assim mesmo, já reparaste? Seria uma tragédia se as pessoas fossem totalmente sinceras umas com as outras. O mundo enlouqueceria. Ninguém suportaria a verdade absoluta. O teatro, o jogo, a ficção são essenciais para a sobrevivência, para o desanuviamento, para a descontracção. É preciso não entrar em paranóia...

Leonardo mudou o tom da conversa, dizendo que à noite podiam ir até à Caparica, mas o amigo lembrou-lhe que não tinham dinheiro para a gasolina.

Há já semanas que ando a trabalhar na invenção de um motor a água — acrescentou Norberto. — Talvez um dia possamos ir por essa Europa fora, até ao fim do mapa. Mas uma coisa é imaginá-lo, outra construí-lo...

Se não desistires, podes vir a ficar rico.

O problema são as multinacionais da indústria automóvel. Sempre ouvi dizer que fazem desaparecer quem lhes ameaça o negócio. De qualquer forma, se eu construísse um motor a água, não seria o primeiro...

Mas Norberto preferia ficar pela teoria. O seu interesse estava em imaginar peças, superar dificuldades, sentir que estava tudo perdido e de repente encontrar uma saída, nem que fosse ilusória. Para ele, depois de vencido esse desafio, não havia mais nada a demonstrar. O seu cérebro libertava-se e regressava às viagens pelo espaço cósmico, que eram bastante mais divertidas do que as viagens pelas ruas de Lisboa.

Por isso, é que nunca vou ser ninguém na vida — explicava. Não passo à prática nada do que penso.

Norberto não se interessava por enriquecer nem nada que se parecesse. Aliás, bastava falarem-lhe em dinheiro para o levarem a desistir de tudo, imediatamente. O dinheiro, a seu ver, era sinal de complicações. Quem o tinha via-se obrigado a investir constantemente para o rentabilizar e só de pensar nisso Norberto perdia o sono. Preferia não possuir coisa alguma a ter que viver em semelhantes condições. Se fosse rico, estaria sempre com medo de perder, fracassar, não corresponder ao que esperavam dele. Antes ser pobre toda a vida do que ter que passar dia após dia em pânico por causa de uma empresa que não dá lucro, por causa de acções na bolsa, holdings, OPAs...

Desde criança que Norberto desistia das coisas. Desde a escola. Fora sempre mau aluno porque desistia. E desistia porque receava desiludir os outros.

Um dia, chegou a casa e informou a mãe que não voltaria a pôr os pés na escola! Esta era uma ilusão, não ensinava o que realmente interessava, era uma perda de tempo.

A mãe tentou demovê-lo, mas Norberto não lhe deu hipóteses.

Não estou interessado — defendeu. — É um martírio.

Norberto só queria viver em paz. Não chateava ninguém e esperava que lhe fizessem o mesmo. Se o conseguisse, seria feliz. Por isso, nem punha a hipótese de casar e ter filhos. Não estava disposto a lidar com tamanhas confusões.

Assim , vais ser sempre um desadaptado — dizia-lhe a mãe.

Antes isso do que outras coisas...

Quando a conversa chegava a este ponto, ela calava-se. Aquele “outras coisas” tinha um alcance suficientemente vago para a desencorajar de novos argumentos. De qualquer modo, ficava pensativa. E remoía consigo mesma ideias sobre o filho e sobre a sua natureza. Norberto era o oposto de tudo o que ambicionara para ele. A sua vida era uma divagação constante.







8



A única vez em que Norberto se candidatara a um emprego regular não tivera sucesso. Por influência de um velho conhecido da mãe, marcaram-lhe uma entrevista com o gerente de uma empresa de equipamento electrónico.

Durante a semana que antecedeu a entrevista, Norberto mal pregou olho. Pensou mil vezes em desistir, contudo a mãe insistiu mil vezes que ele não o fizesse.

Norberto chegou a telefonar para anular a marcação, mas mudou de ideias e desligou o aparelho enquanto a recepcionista estabelecia a ligação para o gabinete do gerente. Só queria que o homem adoecesse, para não ter que o enfrentar. O seu maior desejo era que alguma coisa o impedisse de aparecer no dia e na hora combinados, mas ficar de consciência tranquila, ao mesmo tempo, por ter feito o seu melhor para arranjar um emprego.

Já se via a trabalhar, rodeado de electrónicas, entre fios e cabos de todo o género e feitio, sem ser capaz de acertar numa única tarefa, por mais simples que fosse.

Equipamento electrónico..., equipamento electrónico...”, pensava. Não tinha a certeza de saber exactamente de que se tratava. O termo “electrónico...” dizia-lhe pouco. Tinha dúvidas sobre a diferença entre “electrónico” e “eléctrico”.

Olha que é capaz de ser um bom emprego — argumentava Leonardo. — Não te custa nada ir à entrevista, nem que seja para saberes mais pormenores.

Não sei o que hei-de dizer ao indivíduo. Não tenho qualquer experiência profissional. Não consigo imaginar o que é estar sentado diante de um gerente.

Uma vez tem que ser a primeira. Não podes recusar as oportunidades que te aparecem.

Podias ir tu no meu lugar...

Mas o pedido foi feito em teu nome. Não dá para misturar as coisas. Tens que confiar em ti.

Em casa, à noite, a mãe esperava que o filho chegasse e incentivava-o, dizendo que ele sempre fora inteligente e desembaraçado. Só precisava de não ter medo. Toda a gente que se candidatava a um primeiro emprego passava pelo mesmo.

Só que nem toda a gente se candidata ao primeiro emprego com a minha idade! — respondia Norberto. — Se calhar, nesse dia, vão estar lá outros candidatos bastante mais novos do que eu e com mais bagagem. Com que cara vou sentar-me ao lado deles? Que vão pensar de mim? Não tenho hipóteses.

Cá estás tu com as tuas inseguranças — dizia a mãe. — Quer queiras quer não, tens que ir. Porque eu não vou durar sempre. E não podes continuar nesta situação. Estás a perder o melhor tempo da tua vida...

Norberto retirava-se para o seu quarto a pensar no que a mãe lhe dizia. Pensava, mas não evoluía. As ideias rodopiavam-lhe na mente e conduziam sempre ao mesmo ponto. Ficava horas a olhar para o tecto, ouvindo o que acontecia na rua. Gente que passava, que discutia, que partia garrafas às vezes. Ele não sabia ser como os outros. Faltava-lhe qualquer coisa que o impedia de se comportar como um cidadão vulgar. Não era capaz de ir a um restaurante ou a uma discoteca. Nem sequer se atrevia a passear com uma mulher. Tinha a sensação de que todos ficariam olhá-los, imaginando o que ele faria com ela. E mesmo que nada acontecesse, os outros imaginá-los-iam sempre despidos na cama ou num beco qualquer, trocando prazer. Era como se realmente fizessem o que não faziam. Para não correr riscos de ser despido pelos olhares das pessoas, decidira não ter namorada.

Norberto via nas paredes a cara do gerente com quem tinha entrevista marcada. Umas vezes gordo, outras vezes magro, sempre com óculos, bigode e tez escura. Por fim, deixava de saber exactamente onde se encontrava e adormecia.

No dia e hora marcados, Norberto compareceu à entrevista de emprego. Mandaram-no esperar numa sala durante uns minutos e depois conduziram-no ao gerente. O homem que tinha à sua frente em nada se parecia com o que ele imaginara. Era magro, enfezado, pálido e não tinha óculos nem bigode. Perguntou-lhe apenas o que sabia fazer. Norberto respondeu-lhe prontamente:

Nada! Não sei fazer nada!

O gerente coçou o nariz e pôs-se a olhar para as folhas de papel que tinha à sua frente. Depois, resmungou entredentes que não percebia como era possível alguém que nada sabia fazer ter o descaramento de se apresentar a uma entrevista de emprego. Mal acabou de falar, sacudiu a cabeça e escreveu qualquer coisa no canto de uma das folhas. Parecia ter-se ausentado da sala, subitamente. Ao fim de dois ou três minutos, informou, com voz seca, que o candidato estava admitido para trabalhar no escritório da firma.

Norberto levantou-se, agradeceu e saiu. Mas não acreditou que tivesse sido admitido. E nunca chegou a comparecer no local de trabalho.







9



Estou cada vez pior da comichão — disse Leonardo. —Já não sei o que hei-de fazer. Dizem que é uma alergia, mas tenho a certeza de que não é.

Dá-te sempre isso quando estás muito tempo sem ver a tua filha!... — comentou Norberto. — Não queres assumir as coisas, mas esta é a realidade.

Tem calma... — limitou-se a comentar Leonardo, como se fazendo eco das palavras do amigo.

Não é proibido falar do assunto — disse Norberto.

Pois não... — acrescentou Leonardo, enquanto ia dizendo que não tinha certeza de ser ele o pai!

Norberto argumentou que Leonardo estava apenas a enganar-se a si mesmo, porque a criança tinha a sua cara sem tirar nem pôr.

Deve ser isso que te custa mais — disse Norberto. — Depois queixas-te da comichão! Tens que sentir mesmo comichão... Se fosse eu, também tinha. Não sei como consegues dormir todas as noites sabendo que tens uma filha de três anos que só vês raramente. Deves falar nisso. Falar faz-te bem. Não adianta andares a fingir que a tua filha não existe.

Leonardo visitava-a duas ou três vezes por ano. Norberto era a única pessoa que sabia do caso. Já tinham discutido o assunto inúmeras vezes. Mas Leonardo nem assim mudava de atitude. O problema não era a filha, a quem se sentia profundamente ligado. O problema era a mãe...

Leonardo tinha especial aversão a pessoas gordas. A celulite transtornava-o. As carnes flácidas nauseavam-no. Todo ele mirrava ante um monte de banhas.

Quando soube que ia ser pai, Leonardo esteve várias noites sem dormir. Durante o dia, não falava de outra coisa com Norberto e, à noite, passava as horas em branco a imaginar como seria a criança. Aterrorizava-o pensar que ela poderia vir a ser gorda como a mãe. E o pior era que essa tendência só mais tarde se podia manifestar, havendo até hipóteses de se revelar só por volta dos quarenta. Assustava-o o facto de as pessoas serem bonitas aos vinte ou trinta anos e aos quarenta ou cinquenta engordarem desmesuradamente, alargarem, aumentarem de peso. Pareciam outros, disformes, monstruosas, repelentes.

Nos primeiros meses de gravidez da mulher, discutia muito com ela, mas ainda frequentou a sua casa, como se considerasse a possibilidade de manter a relação, ou de vir a formalizá-la. Todavia, logo que a filha nasceu, passou-lhe uma coisa pela cabeça e desapareceu, não se lembra para onde.

Não gostas da tua filha? — perguntava-lhe Norberto. — Que é que viste nela? Tem algum defeito? Olha que mais tarde podes vir a arrepender-te.

As respostas de Leonardo não eram esclarecedoras. Ficava acabrunhado, evasivo, hesitante, sinuoso.

Mas Norberto sabia que a sua atitude de afastamento para com a filha era uma defesa. O amigo queria apenas minimizar a dor de viver sozinho.

Leonardo sentia-se feito em tiras por dentro só de pensar que Laura cresceria à margem da sua vida, sem lhe ligar, ignorando-o, desconhecendo os seus gostos e tendências. E que ele também não saberia grande coisa sobre ela. Não veria o seu rosto formar-se entra dia sai dia, não presenciaria os seus risos e lágrimas, não assistiria aos seus primeiros passos, não contribuiria para a formação das suas qualidades e defeitos, não a levaria regularmente à escola... Tanta coisa que perderia, tantos aspectos que lhe passariam ao lado.

A ausência da filha era o motivo principal da sua solidão. Um dia que abandonasse este mundo nada teria para lhe deixar. O mesmo que o pai lhe legara. De facto, Leonardo nada acrescentara ao que recebera e passaria a Laura — se passasse — rigorosamente o que lhe havia caído nas mãos.

Nas poucas vezes em que ia ver a filha, sentia o cérebro paralisado. Punha-se a olhar para ela e não era capaz de dizer fosse o que fosse.







10



Na óptica de Norberto, a espécie humana era essencialmente destruidora. Sempre o fora. Desde os primórdios da civilização.

A guerra entre os humanos era uma marca. Uma expressão cultural. Um estigma. Um símbolo. Tanto se havia lutado por um poço de lama no passado como hoje se lutava por um poço de petróleo. Mesmo quando construíam, as pessoas davam-se ao trabalho de destruir primeiro. Aliás, muitas vezes destruíam para construir a seguir. E depois de construir voltavam a destruir... Era um ciclo repetitivo sem saída possível. A construção fazia-se de uma destruição progressiva e sistemática.

Em criança, certa vez, numa ida ao campo, tinha visto cortarem à machadada o pescoço de uma galinha, só que esta a certa altura se libertara da mão que a prendia e desatara a correr pela rua fora sem pescoço, desatinada, perdida, chocando contra as paredes na tentativa de corrigir o rumo, à semelhança dos carros a pilhas que mudam de direcção depois de baterem contra um obstáculo.

Esta visão acompanhou-o ao longo dos anos. Moldou-o, condicionou-o. Discordava que se degolasse uma galinha para depois a depenar e atirar para uma panela com água a ferver. E também repudiava o sofrimento que se infligia às lagostas, cozendo-as vivas. Reprovava qualquer destruição, qualquer matança.

As plantas e as pedras eram as maiores vítimas dos humanos. As plantas eram cortadas, arrancadas, transplantadas. E as pedras eram atiradas, cortadas, rebentadas...

Norberto achava mesmo que a verdadeira poesia estava nos vegetais e minerais. Porque era nestes que residia o mais profundo mistério da linguagem, que só estava ao alcance da poesia. E eram os vegetais e minerais os seres que mais sofriam à face da Terra. A meditação era o seu estado constante.

Destruir era mudar. E como tudo mudava sempre, tudo estava sempre em destruição, tudo estava sempre em desestruturação, para renascer sob outras formas e identidades.

Ele achava que as coisas deviam permanecer como eram, sem alterações. Para sobreviverem, não tinham nada que destruir outras. Para construir, não devia ser necessário deitar abaixo.

Leonardo discordava e defendia que a lei do Universo era mesmo assim, que não valia a pena perder tempo a especular sobre impossíveis.

Mas Norberto revoltava-se precisamente contra essa lei, contra essa ordem, que fazia as coisas serem como são. Achava que a sua única alternativa era especular, lutar contra o inverosímil. Ao fazê-lo, estava a criar uma alternativa, nem que fosse apenas teórica.

Só consegues criar alguma coisa destruindo outra — argumentava Leonardo.

Mas ao criar apenas na teoria, acabo por não destruir na prática! — replicava Norberto. — Se destruo, é na teoria. Nunca hei-de fazer nada na vida, nem que seja para evitar destruir o que quer que seja.

Sabia que a sua posição não tinha seguidores, que era um desadaptado, que ninguém lhe daria razão. Alguns até o considerariam louco. No mínimo excêntrico. Por isso, levava a vida que levava...

Leonardo respondia-lhe falando de sexo. Em seu entender, o sexo era o oposto da destruição. Porque era o prazer máximo, a libertação absoluta. O sexo não mudava. Era sempre o mesmo. E, como tal, devia comandar a vida.

O sexo é construção — defendia. — Quanto mais sexo se faz, mais se cresce e evolui.

Quando fazes sexo também destróis — argumentava Norberto.

De qualquer modo, o sexo cria vida de forma directa e espontânea. E dá origem a tanto prazer que acaba por tornar irrelevante tudo o que possa ser destruído.

Leonardo era de opinião que o sexo justificava a destruição. O sexo era a excepção à regra. Tudo o que não fosse sexo era um desvio. Só havia uma dificuldade, que era a de encontrar alguém com quem se pudesse fazer sexo decentemente. Quando se estava todos os dias com a mesma pessoa, a rotina instalava-se e destruía o prazer sexual. Quando se mudava de parceiro com muita frequência o prazer nem sempre funcionava porque o desconhecimento do outro era fatal e impedia uma satisfação maior. Não era capaz de tocar com um dedo na baleia, mãe da sua filha. A melhor forma de lidar com o problemado sexo era não se meter com quem quer que fosse.







11



À noite, voltaram ao Conde Redondo, para ver se o Opel continuava no lugar. Apesar da idade, era sempre possível aparecer alguém que não lhe resistisse aos encantos.

O carro ainda lá se encontrava. Não tinham dinheiro para gasolina, mas entraram e sentaram-se como de costume.

Leonardo inclinou-se para a frente e pôs-se a sacudir a cabeça, esfregando-a com as mãos.

Estou a ficar careca — disse, estendendo a mão para mostrar a Norberto um rolo de cabelo. — Por este andar, mais dia menos dia fico completamente liso.

Não te cheira a bebida? — perguntou Norberto, de sobrolho franzido.

Só bebemos uma cerveja na festa... — foi a resposta evasiva de Leonardo.

A queda do cabelo e a comichão têm origem nervosa. Isso é tudo por causa da tua filha.

Não estou a achar graça...

Está um cheiro esquisito aqui dentro... — murmurou Norberto.

Queres que eu acenda a luz?

Não é preciso...

Deve haver alguma coisa podre debaixo dos assentos.

Não tens que te envergonhar do que fizeste! Por que não hás-de assumir que engravidaste uma fulana e que és o pai de uma criança chamada Laura? Se te meteste com uma baleia, isso é o menos. O que interessa é que deves assumir as tuas responsabilidades. Meteste-te com uma baleia como podias ter-te metido com uma trinca-espinhas.

Parece-me que está aqui um cheiro a uísque... — afirmou Leonardo, olhando em todas as direcções no interior do carro.

Só agora é que notaste?

Estou meio constipado...

Assume que tens uma filha e verás que tudo isso te passa.

Não achas melhor revistarmos o carro?...

É verdade que a baleia te batia?!

A pergunta soou no ar como um disparo! Leonardo ficou sem perceber o que se estava a passar. No meio da confusão em que mergulhou o seu cérebro, só conseguiu perguntar a si mesmo como pôde Norberto ter sabido que a mulher o agredia. Entre confirmar e negar, preferiu desdramatizar. Reconheceu que tinha acontecido uma vez, uma única vez.

Também não é preciso dramatizar — acrescentou, hesitante e visivelmente enfraquecido de argumentos.

Fora num domingo de manhã em que ele aparecera em sua casa a fim de estar uns momentos com Laura. A baleia aparecera arreliada à porta e dera-lhe um murro na cara. Apanhado de surpresa, Leonardo caíra estendido a seus pés, ante os olhares da vizinhança e da própria filha, que desatou a chorar ao vê-lo maltratado daquela forma. Para evitar um desacato público, sobretudo para que a filha não presenciasse a continuação da violência, preferira retirar-se sem esboçar qualquer reacção.

A partir de então, fazia um sacrifício enorme sempre que ia ver Laura. Imaginava o que diriam as pessoas que o viam chegar, bater à porta e esperar. Quantas apostariam que ele voltaria a ser esmurrado? Quantas ririam dele e o considerariam um cobarde de primeira ordem? Mas a filha estava em primeiro lugar. Por ela, suportaria tudo. Não punha a hipótese de deixar de a ver. Nem que fosse apenas uma vez por década. Nem que fosse agredido da cabeça aos pés até ao resto dos seus dias.

Tenho um plano que talvez te interesse... — disse Norberto. E ante o mutismo do amigo, adiantou, por entre gaguejos e rodeios: — Podemos raptar Laura!!

Leonardo não reagiu. Manteve-se calado. Mas enquanto os segundos iam devassando a ideia apresentada por Norberto, pôs-se a fazer contas de cabeça, concluindo que não tinha condições para educar a filha. Laura não ia passar os seus dias dentro de um carro enferrujado que se limitava a andar (quando andava...) sem rumo pelas ruas de Lisboa. Nem ele nem Norberto eram capazes de desempenhar o papel de mãe...

Antes viveres feliz com a tua filha num carro velho e enferrujado do que seres humilhado publicamente por uma mulher que te agride sem escrúpulos. Já imaginaste que um dia a tua filha pode proceder da mesma forma?!

A observação de Norberto ficou a ecoar na cabeça de Leonardo. Nunca tinha pensado naquilo. Só de imaginar que no futuro podia ser agredido pela filha desnorteava-o por completo. Mas raptar Laura também lhe parecia uma loucura. Não sabia como o faria, nem a que horas... A filha podia gritar e chamar a atenção da vizinhança... A polícia podia aparecer no exacto momento do rapto de Laura... Por entre a precipitação da fuga, ele podia tropeçar em alguma coisa e estatelar-se no chão com a filha nos braços...







12



Lá bem no íntimo, Leonardo admitia que a baleia tivera as suas razões para o agredir. Porque o dever de um pai era estar junto da mulher e dos filhos, independentemente dos problemas que surgissem. Quem não suportava gordas não tinha nada que se envolver com elas. As famílias não deviam desintegrar-se. Por isso, eram famílias. O que contava era o espírito de sacrifício e a capacidade para gerir situações difíceis. Se um casal não tinha filhos ainda se compreendia que optasse pela separação. Mas, se os tinha, a sua obrigação era criá-los. Tal como não se abandona um cão ou gato, também não se abandona uma criança!

O seu procedimento fora incorrecto. Não dera mostras de saber lidar com a situação que criara. No dia em que a filha nascera, perdera o Norte e desaparecera. Foi como se tivesse esquecido a pessoa que era.

Tempos depois, quando veio a si e pretendeu constituir família, já era tarde. As semanas e os meses tinham passado, o que fazia uma grande diferença. Além de tudo, Leonardo não contribuía com um centavo para o sustento de Laura. Era uma situação abominável. Merecia ser esmurrado todos os dias, a todas as horas, sem contemplações.

Tinha vergonha de o pensar, mas era verdade: a baleia tinha o costume de sair de casa, à noite, para se divertir, sem se preocupar com a filha. Fizesse calor ou frio, Laura ficava fechada na varanda do apartamento, ao frio, durante horas, até às três ou quatro da manhã, chorando e gritando que nem um anjo ferido, pedindo socorro por entre soluços e palavras aflitas que muitas vezes mal se ouviam por baixo dos rumores da cidade, da ventania, da chuva...

A baleia não tinha ninguém com quem deixar a filha. Não podia ser proibida de sair e distrair-se. Não tinha posses para pagar a alguém que tomasse conta da criança. O único remédio era deixá-la na varanda entregue a si própria e aos gritos lancinantes, que cortavam a alma, que tiravam o sono a quem os ouvia, quando as noites eram serenas.

Mas quem ouvia os gritos de Laura preferia fingir que não ouvia. Não avisava a polícia, nem os bombeiros, receando ter a baleia como inimiga.

Já a tinham ouvido dizer que ninguém tinha que se meter na sua vida nem na da filha. Se deixava a filha na varanda era para que os seus gritos não fossem tão nítidos na noite, para que não fizessem estremecer as paredes do prédio, para que não incomodasse tanto a vizinhança, para que a porta do apartamento não saltasse das dobradiças, para que a criança não cometesse a loucura de se atirar pelas escadas. Deixava-a na varanda, para que as coisas que tinha dentro de casa se mantivessem intactas. Laura podia atear fogo aos móveis, ou a um qualquer papel velho. Podia desarrumar os quartos, virar tudo de pernas para o ar. Na varanda, ao menos, não fazia estragos. Era uma solução limpa e cómoda.

Quando voltava das noitadas nos bares e discotecas, a baleia encontrava a filha transida de frio e pânico, quase sem noção do que acontecia, perdida no espaço da noite sem fim, rouca de tanto gritar. A mãe abraçava-a e dizia: “Pronto, Laura, não é nada, já passou, não sejas tonta, os passarinhos também ficam ao ar livre de noite e ninguém lhes faz mal. Com o tempo habituas-te, na varanda estás segura...”

Ao ouvir as palavras da mãe, Laura acalmava e esquecia o terror das horas que passava na varanda. Depois, iam as duas para a cama e, para se aquecer, Laura enrolava-se na gordura da mãe. Alguns minutos mais tarde, já dormia que nem um pinto.

Leonardo nunca dissera a Norberto que Laura costumava ser fechada na varanda, ao frio e à chuva. Receava que o amigo denunciasse o caso às autoridades e a internassem em alguma instituição pública. Achava que uma mãe, por pior que fosse, era sempre preferível a qualquer outra solução.

Estás sempre a tempo de refazer a família — disse Norberto.

Já não dá — esclareceu Leonardo. — Ela não me aceita em casa. Diz que nem sabe como foi capaz de se meter comigo, que estava cega, que nunca mais repetiria o erro. Na sua opinião, sou um mau exemplo para a filha. Se me deixa vê-la é porque tem pena de mim, porque acha que posso morrer a qualquer momento e não quer ficar com remorsos. E tem toda a razão. O meu procedimento não merece outra coisa.

Para Norberto, porém, tudo era sempre possível de remediar. As pessoas diziam coisas que nem sempre sentiam. Faziam-no por despeito e solidão.

Leonardo não era tão optimista. Por duas vezes, declarara-se arrependido e chegara a sugerir à mulher que passassem a viver juntos, mas ela nem o quisera ouvir. Para estar perto da filha, Leonardo até estava disposto a suportar as humilhações de uma gorda.

A situação não é tão fácil como parece — acrescentou. — Não posso obrigar uma mulher a viver comigo...

Por isso devias pensar bem na hipótese do rapto. Tens os teus direitos — insistiu Norberto.

O meu erro foi ter desaparecido na altura em que Laura nasceu. A baleia ficou-me com um ódio de morte. Esperou por notícias minhas durante meses. Mas eu estava noutra. A minha preocupação era esquecer que tinha uma filha. E, às vezes, ainda tento. É um crime maior do que fechá-la na varanda, à noite, durante horas!...







13



Leonardo estava sem voz. Transpirava das mãos e do rosto. Ardia. Ao fim de alguns minutos, conseguiu pronunciar a custo:

Evito falar do assunto como se não me dissesse respeito... Mas quanto mais procuro afastar o problema, mais a realidade me cai em cima. À medida que Laura vai crescendo, vou sentindo a situação de outra maneira. Quando a visito, noto sempre evolução nas suas ideias, nos seus sentimentos, nas suas capacidades... E percebo que não faço parte do seu processo de crescimento. Sou um estranho, sinto-me à margem. É como se um de nós estivesse morto... — Depois de alguma hesitação e notório embaraço, acrescentou: — O problema da varanda não é assim tão grave como parece.

E contou, finalmente, ao amigo a forma como a baleia tratava a filha nas noites em que saía de casa para cirandar por aqui e por ali.

Depois de ouvir a descrição minuciosa do amigo, Norberto perguntou:

Durante quantas horas a tua filha fica fechada? Cinco? Três? Seis?!...

Leonardo não sabia responder com exactidão. Nem queria saber. Mas Norberto só estava interessado em pormenores. Como se a solução do caso dependesse da sua gestão criteriosa de alguns pormenores ínfimos.

Quantos degraus são até ao andar onde mora a tua filha? — perguntava Norberto. — É importante que me respondas. Quantas vezes por semana a baleia fecha Laura na varanda?

Leonardo respondeu que na China havia crianças que sofriam muito mais que a filha dele. Morriam de fome, lentamente, com moscas nos olhos, só com a pele sobre os ossos, sem ninguém que se interessasse por elas, amarradas aos berços, por entre os dejectos nos lençóis. E havia crianças na Europa que eram espancadas pelos pais. Espancadas regularmente. Por tudo e por nada. Só porque mexiam aqui e acolá, só porque queriam isto ou aquilo... Não era muito pior ser espancado por alguém que pouco depois de nos agredir ainda tem o desplante de dizer que é o amor da nossa vida? Como era possível um pai ou uma mãe terem coragem de bater numa criança? Terem coragem de castigá-la? Terem coragem de se zangar com ela? Vendo bem as coisas, Laura estava em melhor situação que muitas crianças por esse mundo fora. Só passava algumas horas por semana na varanda da casa. Tinha frio, é certo. E chorava. Mas, pronto... De qualquer forma, Leonardo considerava-se responsável pelo que a baleia lhe fazia.

Por que julgas que já me ofereci para viver com aquela vaca-baleia?! Mas ela não quer, não me dá uma hipótese, não me pode ver na sua frente. Se eu vivesse lá em casa, seria diferente. Podes ter a certeza de que nunca havia de deixar Laura sozinha na varanda. A baleia podia passear e divertir-se à vontade que não me faria qualquer diferença.

É verdade que na China há crianças em pior situação que a de Laura — comentou Norberto. — Mas não podemos conformar-nos com o que acontece à tua filha. Temos que fazer alguma coisa. Porque é a tua filha que está em causa. Não podemos ficar de braços cruzados à espera que um anjo desça do céu para a ajudar. Depois do que acabas de me contar, a ideia do rapto ainda faz mais sentido. Temos que estudar bem o caso. Não podemos falhar. Se não queres entregar Laura às autoridades, é preciso fazer alguma coisa e desaparecer com ela para o estrangeiro!

Leonardo estava confuso. Desaparecer para o estrangeiro?!... Como sobreviveria sem o velho Opel do amigo? Onde arranjaria casa? Como pagaria a renda? Quem lhe daria emprego? E a polícia, que nos outros países era muito mais implacável? Apercebia-se agora de que nunca dissera a verdade toda a Norberto para não ser confrontado com a crueza dos factos. Quando só ele, Leonardo, estava ao corrente do que se passava, ao menos, ia arranjando umas desculpas perante si próprio e as coisas iam andando. Agora, até lhe custava olhar para Norberto.

Embaraçado, pôs-se a palpar os bolsos. O amigo percebeu que ele procurava cigarros. Era uma forma de desanuviar a conversa. Norberto também não os tinha. Já passava da uma da madrugada. No bolso, ambos encontraram 75$00. Só se achassem um lugar que os vendesse avulso. O que era improvável àquela hora.

Passaram dois indivíduos na rua, de mão dada, e Norberto perguntou-lhes se podiam vender um cigarro. Os homens olharam, sem abrandar o passo, e não responderam. Foi como se ninguém lhes tivesse dirigido palavra. Pareciam fazer parte de um filme cuja acção nada tivesse a ver com o que acontecia à sua volta.

Logo a seguir passou uma mulher, de saia curta e cabelo louro platinado, mas quando Norberto ia para lhe falar, Leonardo pediu-lhe:

Vê aí no cinzeiro do carro...

Encontraram uma beata aproveitável, por entre um montão de cinzas a transbordar.

Norberto preparou-se para a reacender, com o maior cuidado, inclinando-se para a frente, com as mãos em concha à volta da boca.

Ao ver a dificuldade de Norberto, que disse qualquer coisa imperceptível enquanto inspirava o fumo, Leonardo ofereceu-se para tentar. O amigo já ia no terceiro fósforo sem conseguir reacender a beata.

Isto já é mais filtro do que outra coisa — resmungou.

Eu consigo... — disse Leonardo.

Mas não foi preciso. Norberto acabou por levar a sua avante.

Depois das primeiras fumaças, passou a beata ao amigo, que a segurou na ponta dos dedos e inalou o fumo com empenho e concentração. Repetiu o gesto duas vezes, devolvendo a beata a Norberto...

Decidiram dormir no carro durante aquela noite, para não sentirem necessidade de fumar no trajecto para casa. No dia seguinte, comprariam fiado num dos vários cafés em que tinham confiança com os empregados. Pagariam quando pudessem.

Leonardo foi o primeiro a sucumbir ao sono, encostado à porta do veículo que estava presa por um fio. Antes de fechar os olhos, pensou que se o fio rebentasse enquanto dormia, a porta abrir-se-ia, mas ele bateria contra a parede, o que evitaria que se estatelasse no chão. Deste modo, a sua segurança estava garantida. Podia sossegar descansado.

Norberto permaneceu acordado durante mais de uma hora. A história de Laura afligia-o. Era preciso inventariar a zona. Contar as árvores existentes nas redondezas, estudar as casas vizinhas, memorizar todas as entradas e saídas do prédio. Fazer uma lista do que não podia ficar atrás: roupa, alimentação, mapas de estradas...







14



No dia seguinte, pouco antes das sete horas, Leonardo acordou com o movimento frenético da rua. Sentia o corpo tolhido e pesado por ter estado horas na mesma posição. Tinha na boca seca um gosto amargo de pano encardido. Durante o sono, escorrera-lhe um fio de saliva pelo queixo, que lhe deixara aquela humidade na manga do blusão sobre cujo braço deitara a cabeça. Precisava de entrar num café para lavar os dentes com os dedos. À falta de escova, era uma forma de aliviar as gengivas.

A seu lado, Norberto dormia com um vago sorriso nos lábios. Tinha a cabeça sobre o volante, ligeiramente voltada na sua direcção. Enquanto observava o amigo e a luminosidade matinal que invadia a rua, Leonardo ia tentando organizar as ideias sobre aquela terça-feira, ou quinta-feira, não se recordava, até podia ser domingo. O entorpecimento do corpo deixava-lhe a mente incapaz de funcionar. Se alguém avançasse para ele, naquele instante, de pistola em punho, não esboçaria qualquer gesto de defesa. Só quando a bala lhe penetrasse no corpo teria a noção de que já era tarde demais e, por isso, também não valeria a pena qualquer esforço para evitar o tiro fatal. E perderia Laura para sempre... Daí a cerca de duas horas, quando os relógios apontassem as nove da manhã, começaria a arrebitar, a analisar os factos, a utilizar os músculos do cérebro. Sabia que era assim por regra. Tornava-se inútil contrariar a lentidão do organismo.

Pelo canto do olho, notou que havia uma sombra inusitada no banco traseiro. Dava ideia de serem dois pés cruzados um sobre o outro. Mas nem se atreveu a verificar o que quer que fosse, tal o adormecimento em que se encontrava.

Voltou a fixar a sua atenção no movimento da rua. De uma porta, saiu um mendigo com vários pedaços de cartão debaixo do braço. Pôs-se a caminhar num sentido e depois no oposto, como se precisasse de aquecer o motor. Para variar, flectia as pernas, duas, três, quatro vezes, preocupando-se em manter o tronco na vertical. Foi andando assim, até desaparecer nos cinzentos da rua.

Leonardo lembrou-se de que não tinha cigarros, mas àquela hora da manhã não costumava sentir necessidade de fumar. Pensou que talvez fosse melhor ir a casa mudar de roupa. Tocou ligeiramente no braço de Norberto, mas logo a seguir arrependeu-se e achou que devia deixar o amigo descansar durante o tempo que lhe apetecesse. Já bastaria, quando acordasse, dar-se conta de que tinha dormido dentro do automóvel.

De súbito, Leonardo ouviu ranger o banco de trás! Assustou-se ligeiramente, mas não foi capaz de articular duas ideias seguidas. Se o assento rangesse de novo, então voltar-se-ia para saber o que se passava. Num carro daquela idade era natural que os assentos cedessem à ferrugem, fazendo barulho sem motivo aparente. Leonardo também pensou que podia ter sido impressão sua. Ou teria sido até um ruído no exterior. E, a dado momento, viu diante de si a cabeça loura com que recentemente se deparara no acidente da marginal de Cascais. Norberto não o levara a sério na altura, mas o facto de se recordar da cena, só por si, já queria dizer alguma coisa. Não é todos os dias que se vê uma cabeça loura por entre os destroços de um acidente rodoviário.

Só quando ouviu tossir, de forma nítida e inequívoca, é que Leonardo teve um sobressalto de lucidez. Quase receou enfrentar a situação. Mas o instinto obrigou-o a mexer-se. Então, verificou que havia mesmo dois pés cruzados atrás de si. Duas botas deformadas, gastas, sebentas de uso. Umas calças, um casaco e uma face por barbear, enrugada pelo álcool.

Leonardo pôs-se rapidamente de joelhos no assento e sacudiu o intruso. Em vão. Repetiu a operação, sem resultados. Aflito, berrou para Norberto, ao mesmo tempo que também o sacudia:

Acorda!

O amigo, porém, estava completamente vergado pelo sono, conforme se percebeu quando o seu corpo tombou sobre o lado esquerdo, enrolando-se mais sobre si mesmo e moldando-se docilmente ao pouco espaço disponível.

Leonardo desprendeu o fio que segurava a sua porta e saiu do carro, com dificuldades, devido à pouca distância a que o veículo se encontrava da parede.

Na rua, interpelou alguns transeuntes, contando-lhes que havia um estranho a dormir no carro do seu amigo, mas não houve quem se interessasse pelo caso. As pessoas ouviam-no, aceleravam o passo e afastavam-se com sorrisos desconfiados.

Desorientado, Leonardo voltou ao automóvel, abriu a porta traseira do lado da rua e puxou o homem pelos pés, com toda a força de que era capaz. Nessa altura o intruso despertou, deixou-se cair sentado no chão, levantou-se logo a seguir, voltou a sentar-se, como se não tivesse ideia sobre o sítio onde se encontrava, e certamente não tinha.

Também tenho direito!... — exclamou. — Também tenho direito! — repetia sem cessar. Animado pelo eco das suas próprias palavras, acabou por se ir levantando, a fim de se fazer ouvir melhor por quem passava na rua. Parecia o pregador de um credo a clamar por verdades que pouco interessavam as massas.

Com os berros, Norberto acordou, saiu do carro, visivelmente atordoado, e perguntou se tinha acontecido alguma coisa...

Leonardo não soube explicar-lhe. Estava confuso com a situação e receava que um eventual comentário seu viesse a piorá-la. Não queria ser acusado de agressão ou de qualquer outro acto menos correcto.

O vagabundo que tinha sido puxado para fora do automóvel é que continuava agarrado ao seu único argumento, dizendo que “também tinha direito!”

O que menos interessava a Norberto e Leonardo era que as atenções recaíssem sobre eles. Se a polícia aparecesse e lhes mandasse retirar dali o carro, não tinham como fazê-lo. Por isso, o melhor era afastarem-se, depressa, sem dar nas vistas...







15



Perto dos Restauradores, Norberto sentou-se no degrau de uma porta e disse que estava com palpitações!

A sério — acrescentou.

Quando o amigo se aproximou para ver o que se passava, agarrou-lhe a mão e forçou-o a pô-la sobre o peito. Leonardo não sentiu nada de especial.

Mais agitado do que nunca, porém, Norberto pôs-se a andar no passeio, de boca aberta e rosto transtornado. Dizia que estava com falta de ar.

Respira! — sugeria Leonardo, obviamente incomodado com a situação e não sabendo o que fazer. — Respira! — insistia. — O que tens a fazer é respirar..., Isso passa-te!

Depois, pensou que a cena com o vagabundo no Opel podia ter influenciado negativamente o amigo e desatou a tranquilizá-lo, afirmando que dali a poucas horas tudo voltaria ao normal.

O pior que pode acontecer é seres multado — disse. — Ninguém vai acreditar naquele tipo. Toda a gente viu que tinha um parafuso a menos.

Mas Norberto nem por isso dava sinais de acalmar.

Não é o carro, é o coração! — esclareceu com ar aflito. — O coração vai-me parar!

Tens a certeza? — perguntou Leonardo.

Não...

Então não faças a coisa preta. Queres que chame uma ambulância?

Espera...

Norberto voltou a sentar-se, desta vez na beira do passeio, deixando cair a cabeça sobre os joelhos.

Isso é dos nervos — disse Leonardo. E ante a mudez do amigo, acrescentou: — Estás em excelente forma para executar o plano de rapto da minha filha! Já estou a ver-te ao volante daquela coisa ferrugenta, sempre a olhar para o relógio e a refilar enquanto eu ando às apalpadelas em volta da casa sem atinar com a forma de pegar em Laura e fugir!

Tens é medo da baleia! — replicou Norberto, reagindo à provocação do amigo.

Não lhe chames baleia! — pediu Leonardo, de forma abrupta.

Mas é o que ela é!! — argumentou Norberto, parecendo definitivamente esquecido das palpitações no coração. — Sempre lhe chamaste baleia. Para te dizer a verdade, nem sei o verdadeiro nome dela.

Já te sentes melhor?

Se calhar, preferias que eu morresse...

Entretanto, Leonardo sentou-se ao lado de Norberto, deixando-se ficar silencioso, enquanto observava o trânsito da avenida.

Sabe-se lá quantas pessoas já andaram por cima deste passeio — comentou Norberto. — Se compreendêssemos a linguagem das pedras, podíamos vir a saber muita coisa. Quando tenho palpitações, penso sempre que o meu fim está a chegar. E imagino logo como será estar sepultado, com terra e pedras por cima dos olhos, do peito, das pernas, do corpo todo. É o repouso absoluto, de qualquer forma. Mesmo assim, deve ser melhor do que ter uma vida monótona, chata, rotineira.

Leonardo quebrou o silêncio e disse que Norberto tinha palpitações porque fazia tudo para que assim fosse. No fundo, era o que ele queria. Era uma questão psicológica. Pensava demasiado nas coisas, em muitas coisas ao mesmo tempo, o que o deixava necessariamente tenso. Se continuasse por aquele caminho, mais dia menos dia, acontecer-lhe-ia alguma.

Como queres que eu me controle? — perguntou Norberto. — Cada um é como é. Tu também andas com um problema de comichão...

Leonardo alegou que tinha um motivo bem concreto para a sua comichão, conforme Norberto sabia...

Estás simplesmente a querer desviar as atenções do teu caso — acrescentou. — Agora, já pareces melhor, mas não te esqueças de que há cinco minutos atrás estavas aí aos pulos a queixar-te de palpitações.

Norberto disse que ia dar uma volta para descontrair e que entretanto aproveitaria para ir a casa desenrascar algum dinheiro para a gasolina.







16



Cerca de duas horas mais tarde, Norberto apareceu na rua da Esperança, ao volante, junto à porta da casa de Leonardo. Estacionou do lado contrário, em cima do passeio, buzinou três vezes e esperou. Ao fim de uns minutos, buzinou de novo. Leonardo apareceu um bocado depois, vestido de fato e gravata:

Vou casar-me!, — disse, tentando justificar a sua aparência fora do habitual.

Norberto respondeu-lhe com uma gargalhada.

Não penses que é brincadeira — replicou Leonardo.

Espero que me apresentes a felizarda...

A minha ideia é fazer circular a notícia de que vou casar, para ver se a baleia, com ciúmes, decide aceitar-me...

Norberto não emitiu som.

Não é tão difícil assim fazer-lhe chegar a notícia...

O motor do carro foi abaixo duas vezes e duas vezes Norberto o pôs a funcionar, sem esconder um ar irritado. À segunda falha, a meio da avenida D. Carlos I, fez um gesto menos conveniente ao condutor do veículo que vinha atrás e que tinha desatado a buzinar. Logo a seguir, inverteu a marcha, acelerando e chiando os pneus na direcção da 24 de Julho.

Vamos para o Chiado — pediu Leonardo. Preciso de ir lá ver umas coisas...

Deves pensar bem nessa cena do teu casamento fictício — advertiu Norberto. — Olha que a baleia pode reagir de forma imprevista e estragar-te o arranjo em três tempos.

Mas Leonardo achava que era preferível lançar o isco, sacrificando a sua própria vida, do que provocar-lhe a ira com o rapto de Laura. Nesta segunda hipótese, arriscavam-se a tê-la à perna para o resto dos seus dias, qualquer que fosse o país para onde escapassem. Teriam que andar sempre em fuga e essa ideia aterrorizava-o.

Ela é capaz de fazer a cabeça doida a qualquer polícia do mundo! — disse Leonardo.

Para Norberto, era demasiado perigoso atiçar o ciúme da baleia. Porque nunca se sabia como o animal poderia reagir. Se calhar, de forma bastante mais agressiva do que em caso de rapto da filha.

Mas eu é que a conheço — defendia Leonardo. — Não imaginas do que ela é capaz...

Estacionaram num espaço apertado perto do Camões e ficaram ainda a falar junto do automóvel. Norberto considerava que o amigo estava a ir longe de mais ao fazer crer que ia casar.

Mas tu é que sabes... — comentou entredentes.

Hoje é um dia especial... — disse Leonardo, como se ninguém estivesse ali para o ouvir.

Seguiram na direcção do Chiado e, ao passarem na Livraria Bertrand, pararam, pondo-se a olhar a montra.

Talvez não fosse má ideia oferecer um romance de amor à baleia — acrescentou Leonardo. — Para lhe aplacar a ira quando ela souber que vou casar!

Norberto defendeu que, actualmente, já não havia romances de amor. Leonardo contrapôs que todos os romances eram de amor. Só era preciso lê-los com o olhar acertado. Na opinião do amigo, contudo, a sociedade sobrevivia do ódio, por isso se compreendia que ninguém se desse ao trabalho de escrever sobre o amor.

Estava a pensar n’ “O Fim da Aventura” de Graham Greene... — exclamou Leonardo.

Sendo para quem é, talvez fosse mais aconselhável “O Curral das Bestas” de Magnus Mills! — sugeriu Norberto.

Eça de Queiroz também pode ser uma solução...

Julgo que não vais lá com romances de amor que já fizeram a sua época.

Podemos entrar e ver o que há...

Prefiro ficar cá fora à tua espera.

Vou lá dentro dar uma vista de olhos...

Leonardo pôs-se a circular por entre as mesas e estantes de livros, espreitando pelo canto do olho, a ver se alguém lhe dava atenção. Folheou “Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde” de Mário de Carvalho, mais ao lado viu “O Suplente” de Rui Zink, “O Vale da Paixão” de Lídia Jorge, “Contos Outra Vez” de Luísa Costa Gomes, “Arkansas” de David Leavitt, Percorreu com os olhos as novidades, espreitou as prateleiras de baixo, depois as de cima, foi ver a sala contígua, a seguir a outra, viu passar um indivíduo alto, de óculos, que tinha o ar abstracto de ser o responsável pelo estabelecimento... Pensou que da próxima vez que o visse por perto lhe perguntaria se tinham romances de amor de autores contemporâneos! Mas sempre que Leonardo se preparava para o interromper, aparecia alguém que se intrometia, que perguntava, que pedia alguma coisa, fazendo com que ele perdesse a coragem de expor o seu assunto.

Era assim desde que nascera. Havia sempre alguém que lhe passava à frente nos instantes decisivos. O que fazia com que Leonardo perdesse oportunidades atrás umas das outras. A única excepção fora o dia em que a gorda se metera com ele. Ninguém se interpusera no banco em que ambos se sentaram no Jardim da Estrela.

Antes de abandonar o estabelecimento, passou as mãos pelo “Até ao Fim” de Vergílio Ferreira, mas não tomou qualquer decisão. Quanto mais livros via, menos esclarecido ficava. Kafka não, Capote não, Borges não. A baleia podia não alinhar. A sua ideia de lhe oferecer um romance de amor corria o risco de ser mal entendida.







17



Vou telefonar à baleia e combinar um encontro — disse Leonardo, logo que se voltou a juntar a Norberto. — Quando ela me vir assim vestido vai ficar desatinada. E Laura, se calhar, nem me vai conhecer...

Norberto reparou que Leonardo já tinha na mão uma moeda e que procurava com os olhos um telefone público. Viu-o afastar-se, pegar no auscultador, esperar uns segundos e depois pôr-se a gesticular, como era seu hábito. Falou durante mais de dois minutos. E quando regressou para junto de Norberto, vinha radiante da vida.

Encontro marcado no Príncipe Real — exclamou quase eufórico. — Dentro de uma hora. Foi ela que sugeriu a zona. Disse que tinha umas coisas a fazer aqui perto e não levantou problemas.

Enquanto não chegava a hora combinada, puseram-se os dois às voltas pela zona. Ao passarem por uma ourivesaria, Leonardo fez questão de entrar. Norberto foi atrás dele, com as mãos nos bolsos. Dentro da loja, pôs-se a olhar para as paredes, enquanto Leonardo se debruçava sobre um dos expositores a fim de apreciar melhor as preciosidades.

Há anos que não entrava num estabelecimento do género. Tantos fios brilhantes faziam-lhe confusão. Pedras, anéis, brincos, relógios. E os preços astronómicos. A sua ideia era ver, apenas. Ver, passar ao lado... Para não sentir o peso dos factos. Naquele dia, contudo, houve qualquer coisa que o empurrou no sentido contrário, que lhe disse “entra” e ele entrou. Obedeceu à ordem secreta, sem se preocupar em identificá-la.

A certa altura, Leonardo viu o seu reflexo no vidro interior de uma das montras e teve a impressão de ser outra pessoa. Voltou a olhar e convenceu-se, realmente, de que o homem à sua frente não era ele. O fato que trazia vestido, e que raramente usava, era essencial para o iludir. Procurou afastar-se de Norberto para que não percebessem que eram amigos. Era mais fácil agir sozinho.

Ao fim de dez minutos, a sombra minúscula da empregada por detrás de um dos balcões ainda não tinha dado sinal de vida. Leonardo sentia-se mais confiante do que nunca.

Passando junto a um expositor vertical, viu um colar de ouro que lhe pareceu ideal para oferecer à baleia. Muito mais convincente do que um romance de amor. Deteve-se por uns instantes e pressionou a fechadura. O vidro cedeu, entreabriu-se, mas Leonardo pensou que era mais seguro verificar se havia câmaras de vídeo instaladas na loja.

Deu dois passos atrás e foi observar outra vitrina. Reparou que Norberto já tinha desaparecido, o que lhe redobrou a confiança.

Deseja alguma coisa? — perguntou de repente a sombra recurvada por detrás do balcão.

Estou só a ver...

A intenção de Leonardo era ficar por ali às voltas durante algum tempo, pedir para observar algumas peças, escolher uma delas e dizer à empregada que a reservasse durante uns breves momentos, tempo durante o qual ele se ausentaria para ir buscar dinheiro. Entretanto, a caminho da saída, meteria a mão no expositor vertical que deixara entreaberto e apoderar-se-ia do colar que considerava perfeito para oferecer à baleia. Faltaria a embalagem, é certo, o papel de oferta e o laço, mas ele pensou que ao dar-lhe o presente despojado de qualquer artifício estaria a realçar a pureza do seu gesto, o que poderia contribuir para marcar pontos junto da baleia, que era avessa a situações convencionais.

O seu esquema só não resultou porque nunca conseguiu voltar a dirigir palavra à empregada da ourivesaria. Ou ela desaparecia de trás do balcão, ou quando se tornava visível, Leonardo não tinha coragem de dizer o que queria. Esteve assim durante mais de dez minutos, disfarçando o embaraço, hesitando, gaguejando e logo a seguir tossindo para que não se notasse o seu estado de espírito. Tentava recuperar a confiança, mas sem êxito. Cada segundo de dúvida deixava-o mais e mais enterrado no descampado de areia movediça em que a loja se tornara.

Procurou Norberto com os olhos. Viu apenas vazio e reflexos de montras. Naquela ocasião, o amigo seria fundamental para o salvar. Leonardo já nem tinha coragem para pensar um segundo que fosse no colar que pretendia oferecer à baleia. Só uma ideia o animava: desaparecer. Contudo, não sabia por onde. Nem atinava com a porta de saída. Qualquer direcção que tomasse lhe parecia errada. “É hoje que vou acabar no calabouço”, pensou. “Não pode ser”, respondia a si mesmo, “não fiz nada de que possam acusar.” Porém, uma voz ribombava na sua cabeça: “Mas tiveste intenção de fazer!...”

Leonardo tremia da cabeça aos pés, recuando, à medida que se sentia mais encurralado na ourivesaria.

A campainha do telefone retiniu, e foi como se Leonardo tivesse caído subitamente na realidade. Aproveitando a situação, preparou-se para sair, chocou contra um dos balcões da loja, a empregada acorreu a ver se tinha havido algum prejuízo, Leonardo disse “desculpe..., desculpe!”, deu duas voltas ataboalhadas sobre si mesmo, raspou ainda numa das vitrinas, viu de relance o colar da baleia, acelerou o passo e abandonou o estabelecimento, envolto em suores frios.







18



Logo que se viu na rua, Leonardo desatou a correr sem se preocupar com a direcção que seguia.

Norberto pôs-se atrás dele, chamando-o pelo nome, mas a reacção do amigo foi correr cada vez mais depressa, parecendo que a polícia ia no seu encalço.

Vamos chegar atrasados! — vociferava Norberto, na tentativa de travar a marcha frenética do amigo. — A baleia vai ficar furiosa contigo.

Enquanto falava, Norberto tentava alcançar Leonardo. Mas quando estava prestes a pôr-lhe a mão em cima, o amigo conseguia sempre escapulir.

A certa altura, Leonardo mudou bruscamente de direcção, enfiando por uma porta aberta à sua esquerda e desatando a subir as escadas.

Quase sem fôlego, Norberto encostou-se à porta por onde Leonardo tinha desaparecido. Depois, deu dois passos para a rua e inclinou a cabeça, a fim de ter uma ideia sobre a altura do edifício. Faltavam apenas cinco minutos para o encontro com a baleia no Príncipe Real.

Norberto encetou a subida das escadas, mas deu com o amigo sentado no segundo degrau do primeiro andar. Sentou-se a seu lado e disse-lhe que estavam atrasados.

Abandonaram o prédio em silêncio, meteram-se no Opel e seguiram em direcção ao local do encontro com Laura e a mãe.

Vê se avistas a baleia! — pediu Leonardo, visivelmente emocionado, quando estavam praticamente a chegar.

É melhor estacionarmos... — comentou Norberto.

Passamos de carro e depois decidimos.

Mal tinham acabado de deixar para trás o Príncipe Real, Leonardo gritou que tinha visto a baleia!, o que levou Norberto a travar com brusquidão, quase provocando o choque com o carro que vinha a seguir.

Continua!, continua! — implorou Leonardo.

Afinal, não queres ver a tua filha?

Mas Leonardo preferia que estacionassem o carro mais à frente e fizessem o percurso a pé até ao Príncipe Real.

Norberto já não sabia o que pensar das confusões e hesitações do amigo.

Nunca se sabe o que pode acontecer — adiantou Leonardo, no momento em que abandonavam o carro sobre o passeio e se preparavam para comparecer ao encontro. — Talvez seja melhor ires falar com ela primeiro!

Fizemos mal em não ter preparado o rapto para hoje. Nem tão cedo voltaremos a ter uma ocasião como esta.

Se falasses com ela primeiro, ao menos ficavas a conhecê-la.

A poucos metros do Príncipe Real, Leonardo parou e pôs-se a olhar para Norberto, perguntando:

Sempre queres ir falar com a baleia?

Não acredito que ela te agrida fora do seu ambiente...

Até lhe pode servir de estímulo.

Norberto decidiu avançar. Mas quando deu de caras com o Príncipe Real, sentiu-se rapidamente inibido e a primeira reacção que teve foi baixar-se e esconder-se atrás de um dos carros estacionados na praça. Avistou a baleia, ao longe, sentada num banco, com os pés enormes dentro de dois sapatos que pareciam lanchas e umas calças de ganga que por pouco não rebentavam nas zonas onde se concentravam os maiores níveis de gordura. Laura saltitava por entre a verdura, com os cabelos negros brilhando na tarde e os braços erguidos atrás das sombras deslizantes.

Depois de pensar um pouco sobre o que fazer nos minutos a seguir, e incapaz de conquistar mais um centímetro de terreno que fosse, Norberto voltou para junto de Leonardo, informando-o acerca do que vira.

Decidiram ir os dois para o sítio onde Norberto estivera a observar a baleia. Agachados atrás do carro, viam Laura correr de um lado para o outro e a mãe olhar para o relógio insistentemente.

Afinal, não vais dar-lhe a notícia do teu casamento?... — perguntou Norberto com malícia.

Era preferível que fosses tu a falar-lhe no assunto em primeiro lugar...

Naquele instante, Leonardo teve a impressão de ouvir Laura chamar por ele. A palavra “papá..., papá...”, ressoava na praça, por entre o barulho dos carros que passavam. Mas ele era um pai que não se atrevia a sair de onde estava escondido e correr para Laura, abraçando-a, por entre risos, beijos e abraços. A baleia tinha razão quando o considerava um cobarde e se recusava a viver com ele. Realmente, Laura não tinha pai. Porque o chamava e não obtinha resposta. Era como se falasse com uma árvore, com um candeeiro de rua, com uma mesa de esplanada.

Achas que a baleia te autoriza a dar um passeio sozinho com Laura? — quis saber Norberto.

É melhor não exigir o impossível — comentou Leonardo.

Este é o momento ideal para raptarmos a tua filha!

Já não sei porque marquei este encontro...

Leonardo sentou-se no chão e encostou a cabeça ao guarda-lama do automóvel atrás do qual se escondia. Pouco depois, disse a meia-voz que a baleia nunca teria ciúmes dele. E reconheceu o fracasso do seu plano. Falhando aquele encontro, o próximo seria mais difícil. E, provavelmente, Laura até o desprezaria, ou agrediria, pensando que ele não quisera estar com ela naquele dia. A partir de então, sempre que a filha fosse encerrada na varanda, durante a noite, os seus gritos seriam mais cortantes e longínquos.

Quando Leonardo e Norberto saíram de trás do carro, ao fim de uns bons vinte minutos, o Príncipe Real estava deserto. Nem se ouvia um pássaro para assinalar o fim da tarde.







19



Queres ir à procura delas? — perguntou Norberto, tentando incutir alguma esperança ao companheiro. Mas Leonardo estava a quilómetros de distância.

Acabou-se! — foi a única palavra que conseguiu articular.

Ainda temos uma hipótese... — murmurou Norberto.

As coisas não deviam ter chegado a este ponto. Acabou-se...

Leonardo recuou alguns metros e encostou-se à parede do prédio que estava por trás dele. Fechou os olhos de gritos abafados, inclinou a cabeça para trás e deixou-se estar assim, de pé, abandonado, enquanto murmurava, numa voz cada vez mais débil:

Acabou-se..., acabou-se...

Por fim, deixou de emitir qualquer som. De braços caídos, rosto pálido, corpo inerte, pernas ligeiramente adiantadas, parecia capaz de desfalecer a qualquer momento, estatelando-se no passeio. A sua respiração era lenta e profunda. Pela cabeça passavam-lhe imagens cavalgando sílabas de pernas para o ar, sentimentos desconexos, fragmentos de ideias, explosões de memórias breves, ameaças desencontradas, sombras frondosas que se desdobravam até ao limite da visão.

Leonardo deixou descair o queixo, entreabrindo a boca e, subitamente, Norberto reparou que ele ressonava a bom ressonar. De pé, encostado à parede do prédio, em plena tarde lisboeta, estirado na vertical como numa cama, de rosto tranquilo e distante, Leonardo dormia com cara de anjo esfaqueado repentinamente surpreendido pela perda das asas. Dormia e ressonava indiferente ao que o rodeava, alheio ao destino da filha Laura, afundado no vazio de si próprio. As suas asas vagueariam pelo tempo, oscilando ao sabor das correntes negras que sobrevoam os fundos inacessíveis dos espaços. E lá, nessa distância imensa, Leonardo nunca encontraria Laura. Chamá-la-ia, procurá-la-ia por toda a parte, perguntaria a toda a gente, mas em vão. Laura partira sem avisar, Laura escondera-se num tempo inexplicável, Laura estava para além de todos os indícios.

Norberto nunca tinha visto uma pessoa dormir de pé. Muito menos com a facilidade e rapidez com que Leonardo o havia feito. Hesitou sobre o procedimento a tomar naquele caso. Entre acordá-lo ou deixá-lo dormir, preferiu não optar. O importante era não afectar o equilíbrio do amigo. Se não se deve acordar os sonâmbulos, provavelmente também não se deve acordar as pessoas que dormem e ressonam de pé. Os efeitos podiam ser idênticos. Norberto recuou alguns passos, guardando uma distância prudente da cena em que o companheiro havia entrado, mas sempre com os olhos fixos nele, não fosse acontecer-lhe algum imprevisto.

Vindos de parte nenhuma, passaram dois homens que, perplexos, se detiveram a observar Leonardo.

Está a dormir?... — perguntou um deles, após os primeiros momentos.

Pssss — fez Norberto, colocando o indicador sobre os lábios. — É melhor não o acordarmos, para não o assustar.

Mais tarde ou mais cedo, terá que vir a si — comentou um dos homens.

Mas só está a dormir há minutos...

Há quantos dias não vai à cama?

O problema é que se calhar não prega olho.

Teve sorte em cair no sono. Há gente que se habitua e passa meses sem dormir.

Não sei como o vou tirar daqui...

Vá dar uma volta e depois passe por cá a ver se já acordou!

Nesta altura, havia mais de dez pessoas à volta de Leonardo, vendo-o dormir e ressonar de rosto virado para a luz. Ninguém sabia o que fazer.

Quer que eu chame um médico? — perguntou uma senhora de meia idade na direcção de Norberto.

É melhor não...

Ao fim de duas horas, Leonardo ainda dormia, embora silenciosamente. Desde que deixara de ressonar, tinha-se mexido uma vez, para coçar a orelha esquerda. Pingos de suor escorriam-lhe pelo queixo, lentamente, tropeçando nas saliências dos pêlos de barba, contornando uns, esbarrando noutros, mas sempre deslizando em passo de lesma.

Várias dezenas de pessoas haviam passado por ele, umas parando e querendo saber o que acontecera, outras simplesmente virando os olhos, ou nem isso.

A quem perguntava, Norberto mal sabia explicar o que sucedera... Dizia que era por causa de uma criança que estivera a brincar ali a uns metros de distância, que Leonardo tinha um problema com a mãe da menina e que, de repente, lhe dera aquilo, começara a dormir contra a parede sem mais nem menos e a ressonar como um navio. Depois, Norberto ria de forma estridente e despropositada, para logo a seguir voltar à mesma explicação...

As pessoas ficavam sem saber o que pensar. Algumas deixavam-se estar com caras sisudas a olhar Leonardo e outras afastavam-se, desconfiadas, não fosse aquela história uma artimanha para atrair desprevenidos.

Norberto sentia-se emparedado entre o que contava e a interpretação que as pessoas davam à suas atitude. Não podia permanecer ali por muito mais tempo. Até porque o frio da noite não tardava. Havia que tirar Leonardo do Príncipe Real nem que fosse necessário carregá-lo às costas para o carro. Por sorte, tinha estacionado relativamente perto. Não punha a hipótese de trazer o automóvel para o sítio onde se encontrava para não deixar o amigo sozinho por um minuto que fosse. Nunca se sabia do que as pessoas eram capazes ante um ser indefeso, a dormir, em pé, na via pública.







20



Norberto abriu com o pé a porta traseira do carro e deixou cair no assento o corpo desengonçado do amigo, que nem assim acordou.

A fim decidir o que faria com Leonardo, que ressonava, de novo, fazendo um tal ruído que até parecia que o carro tinha dois motores, Norberto deu umas voltas pela cidade. Desceu ao Marquês, seguiu pela Fontes Pereira de Melo, Avenida da República, Campo Grande..., sempre mais distante do sítio em que Leonardo adormecera.

Deixá-lo no seu quarto da Rua da Esperança seria arriscado porque não havia quem olhasse por ele e não se sabia o estado em que ficaria depois do que se passara no Príncipe Real. Podia acordar perfeitamente normal como se nada tivesse acontecido, como poderia acordar profundamente marcado pela perda da filha. Sim, porque o desaparecimento de Laura significava realmente uma perda, conforme poderia compreender quem tivesse estado no Príncipe Real naquela dia, àquela hora, para interpretar o vazio que se gerou na praça no momento em que Leonardo proferiu o termo “acabou-se”. Foi o nada, o puro nada de Laura, que se implantou numa zona de metros em redor.

Ao fim e ao cabo, Norberto era o único amigo de Leonardo, por isso fazia todo o sentido que o acolhesse em sua casa. A mãe decerto não se oporia à decisão.

De qualquer forma, quando Norberto entrou com o amigo ao ombro, foi logo estendê-lo na sua cama e fechou a porta, para não ter que dar explicações imediatas,

Leonardo caiu sobre a cama e deixou-se estar de braços abertos, a ressonar de forma cada vez mais trepidante, ora fazendo lembrar uma orquestra sinfónica, ora imitando na perfeição a passagem de um comboio sobre uma montanha de pedras metálicas.

Norberto sentou-se na beira da cama e deixou-se estar ali, inerte, a ver o amigo. Era um momento sem alma. Porque Laura tinha desaparecido. Como se alguém tivesse decidido executar o plano de rapto que Norberto vinha a congeminar há tempos.

Laura tinha-se esfumado, deixando Leonardo repentinamente sem chão, de olhar fixo no céu de Lisboa, onde morrem os pombos deserdados.

A mãe de Norberto interrompeu a solidão dos dois amigos, entrando bruscamente no quarto, para saber que barulho era aquele que ameaçava pôr-lhe a casa abaixo.

Ao abrir a porta, deu de caras com o filho sentado na cama e um desconhecido estirado a ressonar como uma betoneira.

Norberto levantou-se prontamente, correu para a mãe e pô-la fora do quarto.

Não me faças isso! — disse ela. — Devias ter mais respeito por mim. Não admito que metas gente de fora cá em casa.

Não é gente de fora — respondeu Norberto. — É Leonardo, o meu amigo Leonardo, que anda comigo todos os dias!

Que anda contigo todos os dias?! Mas tu estás sempre a dizer que não tens amigos!

Norberto respondeu mal-humorado que ela não tinha nada que se meter na sua vida e voltou para junto do amigo, enquanto a mãe protestava, dizendo que não estava certo ele fazer aquilo sem sua autorização, que era um abuso, um descaramento...

Tanto que eu trabalhei para seres alguém — ouviu-a exclamar — e esta é a paga que me dás! Ingrato! Ingrato!! — e quando proferia a palavra “ingrato” ia levantando a voz, progressivamente, até não se ouvir mais nada, nem sequer o ressono de Leonardo, só “ingrato..., ingrato...”, como se aquela palavra concentrasse em si a dor de toda uma vida. “Ingrato” era Norberto e o mundo e o tempo e todos os motivos de desilusão que se iam acumulando na sua memória ao longo dos anos. Só que o filho era o motivo mais à mão e por isso a palavra “ingrato” lhe assentava perfeitamente.

Norberto sabia que era apenas uma vítima dos desgostos da mãe e receava que os seus gritos de “ingrato!, ingrato!” acabassem por despertar Leonardo, enlouquecendo-o. E se Leonardo não enlouquecesse, o seu medo era que fosse a mãe a perder o tino. Encurralado entre duas possibilidades de loucura, avançou para a mãe, dizendo — cale-se!, cale-se! — Porém, quanto mais a mandava calar mais ela gritava — ingrato!, ingrato! — O barulho era tal de forma ensurdecedor que Norberto pensava que Leonardo já devia ter acordado, havendo mesmo o perigo de enlouquecerem ambos, o amigo e a mãe. No meio dos berros e da confusão, com um a dizer “cale-se” e o outro “ingrato”, Norberto já se via sozinho no mundo, ao volante do seu Opel, vagueando pelas ruas de Lisboa sem ter uma sombra onde cair.







21



Leonardo só acordou no dia seguinte. Abriu os olhos e viu Norberto sentado na cama a fixá-lo. Ao reparar que o amigo despertara, Norberto deu um salto, dirigiu-se à janela e abriu-a. Mas Leonardo fez um gesto com a mão, suplicando que o deixasse às escuras.

Queres tomar alguma coisa? — perguntou Norberto.

A resposta foi negativa. Leonardo tinha os olhos abertos, mas era como se estivesse morto sobre a cama. Para além do “não” que fizera com a cabeça, o seu corpo não voltara a mexer. Nem sequer as pálpebras. Se ressonasse, era porque dormia de olhos abertos. Como não o fazia, dava a ideia de ser um cadáver. Vestido de fato e gravata. Um simples invólucro sem nada por dentro.

Norberto saiu do quarto e foi sentar-se à mesa para o pequeno-almoço. Despejou o café na chávena, uma colher de açúcar, que se pôs a mexer, maquinalmente.

A mãe surgiu do fundo do corredor e perguntou-lhe se pretendia mais alguma coisa. Perante a ausência de resposta, adiantou que teriam que conversar sobre o homem que ele metera na sua cama.

Não é um homem — esclareceu Norberto. — É um amigo.

Um amigo que nunca vi na frente e de quem nunca te ouvi falar.

Já disse que não tenho que te dar contas sobre a minha vida.

Onde dormiste a noite passada?

Dormi onde me apeteceu!

Um dia, hás-de arrepender-te da forma como me tratas. Passas o dia fora e até parece que nem te lembras que tens mãe.

Norberto contou que o amigo perdera uma filha, a única filha que tinha, mas a mãe reagiu com prontidão, dizendo que ele não viesse com mentiras, que estava farta de invenções, e que mais dia menos dia era ela quem desapareceria do mapa!

Estou farta de trabalhar nesta casa, para um lado e para o outro, e para quê? Para alimentar um vadio!, um homem que nada faz e que nem se preocupa em arranjar emprego. Não aguento mais! Estou aqui sempre fechada, como se estivesse presa...

O mundo é grande...

Sair para onde? Com quem? Para fazer o quê? Nem tenho uma pessoa a quem telefonar. Às vezes, até dá a impressão de que não há casas nem países lá fora. Ninguém me liga. É como se eu não existisse. Por isso, não tenho para onde ir. Já foste a minha razão de viver, mas há muito tempo que te afastaste e deixaste de me falar. Sou uma planta num canto de estufa, que apenas sobrevive porque ainda recebe alguma luz... Tantas vezes que te pedi para me levares a ver o rio. E nunca me fizeste a vontade. Fica aqui tão perto o rio, mas vou acabar os meus dias sem o conhecer... És como o teu pai. Durante anos, prometeu que me levaria ao rio a passear. E ainda hoje estou à espera.

Norberto ouvia a mãe e pensava em Leonardo. Preocupava-o que o amigo pudesse estar a ouvir a conversa. A história do rio incomodava-o. Não sabia exactamente porquê, mas havia naquela questão do rio algo que o deixava fora de si. A mãe não tinha que falar num assunto que vinha completamente a despropósito. O rio ficava tão perto, afinal, que ela não precisava de ninguém que a levasse até lá. O seu argumento era uma simples desculpa para não sair. Desde há anos que a mãe não punha o pé na rua. Até os mantimentos lhe eram levados a casa pelo merceeiro do bairro, que lhe conhecia os hábitos ao pormenor, os gostos, as quantidades, as marcas preferidas. Passava o tempo na cozinha, mesmo quando não tinha nada que fazer. Amuada com tudo. Ressentida.

Durante cinco dias e cinco noites, Leonardo manteve-se fechado no quarto de Norberto, sem emitir palavra, sem comer, sem beber, sem ressonar. Só quando o amigo tentava abrir a janela, Leonardo fazia que “não” com um movimento de braço.

Norberto também esteve sempre em casa durante o tempo em que Leonardo não se levantou. Por diversas vezes, a mãe tentou deslindar o que se passava entre o filho e o amigo que ele trouxera para casa, mas a posição de Norberto nunca se alterou. Se a mãe queria ir ver o rio, que fosse, a distância era curta, mas quanto a Leonardo nada tinha a acrescentar.

Ao fim do quinto dia, Norberto tomou a decisão de entrar no quarto onde estava o amigo e abrir a janela de par em par, obrigando-o a enfrentar a realidade. Fê-lo com tanta convicção que nem olhou para a cama quando a contornou para se dirigir à janela. Logo que o clarão de luz invadiu o quarto, reparou que a cama estava vazia. Teve um sobressalto, um pressentimento. Correu para a casa de banho. Ninguém. Precipitou-se para a rua.







22



Leonardo estava sentado no Opel, a poucos metros da casa de Norberto:

Estou farto de esperar por ti — disse.

Podias ter dito que ias sair... — comentou Norberto, enquanto se sentava a seu lado, pondo as mãos no volante e respirando fundo.

Há cinco dias que não ressono!... — acrescentou — Leonardo. — Cinco dias é muito tempo. Sinto-me mal quando não ressono. Para mim, ressonar é tão importante como respirar e comer...

Norberto não soube que pensar das palavras do companheiro. Nem estava certo de ter percebido bem. Em vez de dizer qualquer coisa sobre a filha, Leonardo queixava-se de não ressonar há cinco dias!... E insistia no assunto, dizendo que sentia falta de se ouvir ressonar enquanto dormia. Dormir e ressonar era um dos seus maiores prazeres. Importante era ouvir o seu próprio ressonar. Porque só ouvindo-se ressonar tinha a consciência de estar a dormir, uma experiência mais profunda que todas as outras. Para quem não ressonasse ou não se ouvisse ressonar, o sono era apenas um estado de abandono, de inconsciência. Era a morte, na verdade. O fim de tudo. A desolação completa. Para escapar à experiência da morte enquanto se dormia, era necessário ouvir o próprio ressonar, ter a noção de dormir estando acordado. Quem ouvia o seu ressono não perdia a noção de si mesmo. Havia um grande prazer no facto de se saber que se estava a ressonar e dormir ao mesmo tempo. Uma coisa era dormir, outra coisa era saber — sentir — que se dormia. O ressono era a linguagem da inconsciência em vigília, o eco da consciência adormecida. Quando dormia, ressonando e ouvindo-se ressonar, Leonardo não pensava em nada, não se deixava afligir por coisa alguma. Dormia e tinha a certeza de que assim era através do ressono que ouvia. Podia acompanhar razoavelmente o que se passava no mundo, podia descansar, podia reflectir de alguma forma, podia divagar...

O facto de não dormir há cinco noites deixava-o sem balizas, sem pontos de referência.

Norberto perguntou se Leonardo queria um cigarro, mas este respondeu que tinha deixado de fumar.

Se não fumo há cinco dias, mais vale deixar de vez. Prefiro ressonar a fumar.

Para Norberto, um cigarro sempre fazia algum bem. Pelo menos descontraía... Leonardo achava que fumar era uma ilusão. O cigarro dava a falsa impressão de estarmos acompanhados. Só que, na verdade, os cigarros não nos compreendiam. Nem ensinavam o que quer que fosse sobre a morte.

Sei que deixando de fumar me vou sentir mais só — adiantou Leonardo — mas esta é a maneira de me conhecer melhor. Quero sentir tudo, do princípio ao fim. Por mais que custe. Quando me apetecer fumar, hei-de pôr-me a dormir. O prazer de ouvir o nosso próprio ressonar é mais forte do que o prazer de saborear um cigarro. Com o hábito, o cigarro perde qualidade.

Não estás a querer fugir à realidade? — perguntou Norberto.

Mas Leonardo achava que não. Se continuasse a fumar é que estaria a fugir à realidade. Ainda era jovem, tinha muitos anos de vida à sua frente. Podia sempre recuperar o tempo perdido, não repetindo os erros do passado...

Norberto entendia de maneira diferente. Não era evitando os erros que se deixava de cometê-los. Só os erros faziam sentido. O que interessava era saber geri-los, de forma a criar novas situações que, por sua vez, davam origem a novas dinâmicas, novos erros. O contrário do erro só existia ao nível teórico. Na prática, era impossível agir de acordo com as normas. Ou, pelo menos, nada indicava que o nosso comportamento fosse capaz de agir segundo uma determinada teoria. Esta, como era sabido por toda a gente, nunca coincidia com a prática. O erro, sim, era a fuga ao estabelecido, era a não coincidência entre dois espaços, dois momentos. E, por ser não coincidência, o erro era a liberdade, era a ausência de obstáculos no caminho.

Só o erro existe, só o erro vale a pena, só o erro conta — concluiu Norberto.

Leonardo não replicou. Estava pensativo, com a cabeça caída para a frente, como se tentasse dormir a todo o custo. Norberto reparou que o amigo tinha a boca seca e a gravata desalinhada.

Estás a dormir? — perguntou.

Não, estou só a fazer umas contas de cabeça...

Queres ir a algum lado?

Tudo menos voltar atrás...

E enquanto Norberto não se decidia, Leonardo pôs-se a bater com as mãos nas pernas, ensaiando ritmos, que fazia acompanhar por sons rápidos e variados de boca.

Podíamos formar uma banda — sugeriu num dos intervalos para respirar.

E os instrumentos?

Mas Leonardo achava que podiam perfeitamente dispensá-los. Tinham os pés, as mãos, as bocas, os materiais do carro, os toques nos vidros, nos estofos, no volante...

Uma banda pode ser muita coisa — disse. — Eu componho e tu cantas. Damos concertos no automóvel, que é o nosso palco ambulante. E nem precisamos de audiência. Somos artistas e espectadores ao mesmo tempo. Podemos fazer a música perfeita ou fazer a maior borracheira, sem corrermos riscos.

Norberto entendia que o amigo queria apenas esquecer alguma coisa. A sua ideia da banda era uma desculpa, uma forma de preencher o vazio que o inundava. Norberto não se sentia à vontade para lhe falar de Laura. Receava que ao ouvir o nome da filha, ele voltasse a reagir mal e caísse de cama para o resto dos seus dias. Havia de esperar que Leonardo abordasse o assunto. Nem que fosse dali a dez anos. Vendo bem as coisas, Laura não tinha morrido. Norberto atirou a ponta de cigarro pela janela, deu a volta à chave na ignição e arrancou.







23



Tomou a direcção do rio e, ao avistá-lo, recordou-se do desejo que a mãe nunca realizara. Apeteceu-lhe voltar a casa e convidá-la a vir conhecer o Tejo. Mas logo a seguir pensou que Leonardo não se encontrava nas melhores condições. Não lhe interessava que a mãe visse o amigo naquele estado, para evitar que ficasse com uma ideia menos boa acerca dele.

O rio começava a atormentá-lo, a torturá-lo por dentro, só de pensar que a mãe podia morrer sem o ver.

Norberto seguiu na direcção de Belém, mas acabou por inverter a marcha, ao pensar que para a frente tinha rio e mais rio à sua espera.

Chegado ao Terreiro do Paço, percebeu que o rio lhe entraria pelos olhos na zona do Parque das Nações. “O mar é outra coisa...”, já dizia a mãe, recordando a ilha onde nascera. “É outra coisa... — nada que se compare a um rio.”

Agora, percebia por que razão a mãe nunca se atrevera a conhecer o rio sozinha. Percebia mesmo por que motivo ela nunca saía de casa. É que o rio estava em toda a parte, o rio cercava Lisboa por todos os lados, o rio dominava em todas as frentes, ameaçando encher e inundar ruas, casas, lojas, carros. O mar ficava longe e o pior que fazia era embravecer, limitando-se a bater contra as rochas e os areais. O mar era a respiração da ilha, a sua música, o caminho dos que nada tinham. Acabava por constituir um elemento fundamental nas tempestades.

O rio nem sequer ameaçava. Não se eriçava, nem rugia, envolto em ondas. Enchia apenas, sem limites. Enchia, de mansinho, sem inspirar receios e apoderava-se calmamente das coisas, das vidas, das pessoas.

O que valia era Lisboa ser feita de colinas. Para proteger a cidade dos avanços do rio. Só que a mãe era cautelosa. Nem confiava nas colinas da cidade. Vivia aferrolhada em casa, à espera que o filho, um dia, se decidisse a mostrar-lhe o rio. O mesmo rio no qual a cidade se revia, há séculos, se repensava, se reconstruía.

Quando deu por si, Norberto já estava na Calçada de Carriche, rumando a Loures, para fugir ao rio, à semelhança do que faziam centenas de outros carros que naquele momento abandonavam Lisboa. Os poucos que entravam na cidade deviam ser de outra galáxia. Turistas, pessoas de outras latitudes, com planos concretos e incontornáveis.

A certa altura, desatou a chover. Primeiro a chuviscar, depois a chover. O limpa-pingas do Opel não funcionava. Norberto não via um palmo de estrada à sua frente.

Pára! — avisou Leonardo, como se despertando bruscamente da sonolência em que caíra.

Mas Norberto achava que ainda tinha visibilidade suficiente para continuar a descer a Calçada.

Vais bater! — insistiu Leonardo. — Encosta à direita.

Nesse preciso momento, houve uma falha do motor e Leonardo berrou:

Não te disse para encostares?! Nunca fazes o que digo!

Mas Norberto conseguiu manter o carro a trabalhar, insistindo em descer a Calçada sem limpa-pingas. Leonardo é que não esteve pelos ajustes: desprendeu o fio que segurava a porta do seu lado, abriu-a e ameaçou sair se o amigo não parasse o carro.

A atitude de Leonardo enervou Norberto, que se pôs a olhar para os lados, tentando conquistar espaço para alcançar a faixa direita da estrada, apesar de não ter pisca que lhe valesse naquela aflição.

Não consigo! — exclamou.

Depois de várias tentativas e hesitações, já quase no fim da descida, o automóvel acabou por fazer um pião, ficando atravessado no meio da rua, com o motor parado.

Houve uma quantidade de travagens e apitos por parte de outros condutores, carros que derrapavam e se desviavam a poucos milímetros do de Norberto, enquanto este dava tudo por tudo para pôr o motor do Opel a trabalhar. Carregava no acelerador, freneticamente, e dava a volta à chave na ignição, mas o veículo não respondia.

Estes tipos de Odivelas são doidos!! Vão bater-nos — berrou Norberto, só então reparando que Leonardo tinha aproveitado a confusão para abandonar a viatura e pôr-se aos pulos na rua, indiferente à chuva que caía copiosamente, fazendo sinais frenéticos aos condutores, para que se afastassem, para que tomassem cuidado, para que abrandassem. Depois, metia a cabeça pelo vidro do carro e dizia para Norberto:

Estás a encharcar o motor!, não carregues no acelerador.

Agora é que nunca mais saímos daqui — desabafou Norberto. — A Calçada de Carriche é tramada. Vão apertar-nos sempre e impedir-nos de encostar. Ninguém olha, ninguém quer saber. Daqui para a frente já não é Lisboa, é outro país, outro povo.

Leonardo dialogava com alguns condutores que pretendiam saber o que se havia passado. Esbracejava e saltava, dentro do fato amarrotado, fazendo lembrar um maestro que exibia a sua arte ao ritmo da passagem dos carros.







24



Ao fim de cerca de meia hora, completamente encharcados, conseguiram empurrar o Opel para a berma da estrada. Sentaram-se no carro, mas Norberto logo percebeu que resfriariam e constipariam em poucos minutos.

É melhor não ficarmos aqui — comentou.

Não temos para onde ir. Chove cada vez mais... E estou cheio de comichão — replicou Leonardo.

Vamos a pé. De qualquer maneira, já estamos molhados.

Mas Leonardo não concordou. E disse que nem dali a três horas chegariam a casa.

Norberto respondeu-lhe com uma gargalhada e declarou que arrancaria naquele mesmo instante. Quanto a Leonardo, ou seguia o seu exemplo, ou ficaria no carro a apodrecer com a sua comichão!...

A última expressão de Norberto fez eco na cabeça de Leonardo: “Ou ficaria no carro a apodrecer com a sua comichão..., a apodrecer com a sua comichão...”

Sem perder tempo, Norberto saiu do carro e avançou pela Calçada de Carriche acima, em sentido contrário ao trânsito, determinado a não olhar para trás. Sabia que, mais minuto menos minuto, o amigo se decidiria a seguir-lhe os passos. Se Leonardo não o tivesse enervado num dos momentos cruciais da condução, nada daquilo teria acontecido. Nem precisou de olhar para saber que o companheiro vinha a segui-lo. Aliás, fazia parte da sua estratégia não olhar para trás. Por nada deste mundo. Mesmo que o céu desabasse sobre Lisboa. Havia de chegar a casa sem trocar uma palavra com Leonardo.

Se pensa que vou falar-lhe, está muito enganado”, murmurava Leonardo. “Só um verdadeiro nabo faria uma manobra tão desastrada. Se tivesse encostado o carro quando eu lhe disse para o fazer, tudo teria sido diferente”. Leonardo meteu a mão ao bolso. Nem um centavo. Não tinha hipóteses de tomar autocarro. Pedir boleia estava fora de questão. Era a última coisa que faria na vida. “Não volto a meter-me naquele Opel”, dizia de si para si. “Já devia ter aprendido. Nunca mais...”

Alguns metros mais à frente, Norberto pensava que Leonardo não tinha nada que se ter posto aos pulos no meio da estrada. Tinha sido um desvario escusado. “Que é que as pessoas deviam ter pensado? Que éramos dois foragidos à Justiça!”

Olhou para o relógio e fez contas de cabeça. A distância era maior do que parecia. A chuva não ajudava. Ainda faltava bastante para chegar ao Campo Grande. E depois vinha Entrecampos e o Saldanha... O vento mudou de direcção e passou a bater-lhe na cara, fustigando-o com grossas bátegas de chuva. Pôs a hipótese de se abrigar em qualquer sítio, mas concluiu que Leonardo o ultrapassaria, aproveitando para se rir dele. “Vai dizer que fui eu que quis fazer o percurso a pé, mas que no fim de contas me deixei assustar por um chuvisco!” E mesmo que não parasse para se abrigar, Norberto corria o risco de ser ultrapassado pela marcha rápida e ritmada que tinha a certeza Leonardo vinha fazendo nas suas costas. Apesar de ter no bolso umas centenas de escudos, não punha a hipótese de tomar autocarro.

Leonardo tratou de estugar o passo. Não queria ver encurtada a distância que o separava do companheiro. Ao fim de umas centenas de metros, já se encontrava quase lado a lado com Norberto. Só o barulho dos carros impedia que ouvissem a respiração um do outro.

Se Norberto acelerasse a marcha para evitar que Leonardo o alcançasse entraria em passo de corrida. E, se o fizesse, sucumbiria pelo caminho. A sua intenção era manter o ritmo mais acelerado possível, sem cair em exageros.

Leonardo tinha o objectivo de ultrapassar o amigo. Sabia que ele não forçaria o passo porque receava que o coração não aguentasse. Não fora Leonardo a sugerir aquela solução, mas já que Norberto optara por ela, Leonardo demonstraria que estava à altura dos acontecimentos, chegando à Rua da Esperança muito antes de o amigo atingir a Rua da Rosa. E prometia a si mesmo que não voltaria a procurá-lo. Se Norberto o fizesse, havia de ver como reagiria na altura. Aquilo não era comportamento que se tivesse. Ir-se embora, sem mais nem menos, dizendo que ele ficasse “no carro a apodrecer com a sua comichão” era uma atitude inclassificável. O companheiro fora longe demais.

Pelo canto do olho, Norberto viu que o amigo caminhava praticamente a seu lado. O melhor era deixá-lo ir. Não responder à provocação. Ainda havia muito caminho a percorrer e não se sabia o que lhes podia estar reservado mais à frente. Até ao Campo Grande, o corpo não se ressentia. Adaptava-se ao ritmo dos passos. Depois é que se veria de que forma suportaria o resto da marcha. Se seria capaz de manter a aceleração ou se teria necessidade de abrandar.

Em poucos minutos, Leonardo ganhou um avanço significativo sobre Norberto. Ultrapassou-o sem desviar o olhar, ainda na subida, e desatou a andar por ali fora como se tivesse uma meta a atingir, um tempo a cumprir, uma multidão à espera para o aplaudir. A sua maior estatura permitia-lhe conquistar mais terreno com menor número de passos.

A fim de não ter que se confrontar com a vantagem do companheiro, Norberto foi-se deixando ficando para trás, foi desacelerando, progressivamente, até normalizar o andamento. Tinha muito tempo para chegar a casa. Não faria sentido competir com o amigo. Só era preciso não arrefecer o corpo. E, entretanto, ir pensando no que havia de contar à mãe.







25



Antes de chegar ao Campo Grande, Norberto já perdera Leonardo de vista... As pernas tremiam-lhe de uma forma que o fazia sentir-se bem consigo mesmo. Dava prazer senti-las fraquejar. Porque a cada momento que não iam abaixo, Norberto tinha a noção concreta da sua capacidade de resistência. E crescia, crescia... Só esperava que o coração não o deixasse mal e que as palpitações não voltassem a afectá-lo, obrigando-o a pedir boleia. Disse a si próprio que faria a vontade à mãe, logo que chegasse a casa. Mudaria de roupa e iria com ela ver o rio, quer fizesse chuva ou sol. Iriam ao Terreiro do Paço, que não ficava longe, para a mãe apreciar as águas que banhavam Lisboa. Algo lhe dizia que não devia adiar a promessa por mais tempo. Nunca se sabia o que podia acontecer. Só esperava chegar a casa de perfeita saúde e que a mãe não arranjasse uma qualquer desculpa para continuar a não pôr o pé na rua. O seu comportamento era imprevisível. E podia muito bem reagir ao convite do filho, dizendo que já não queria ver o rio, que mudara de ideias, que já era tarde demais, que havia de morrer sem realizar aquele sonho. Tanto fazia. Era apenas um sonho. Nada de especial. Não se perdia coisa por aí além. Que Norberto não se incomodasse por ela, que fizesse a sua vida, que fosse dar uma volta com o amigo, que aproveitasse o tempo para se distrair.

Leonardo não olhava para trás, mas sabia que Norberto tinha ficado a quilómetros de distância. Sentia-se mais vigoroso do que nunca. Talvez pelo facto de estar há cinco dias sem fumar. Aquela caminhada viera mesmo na melhor altura. Ainda por cima debaixo de chuva. Era um teste à sua resistência. De há alguns dias para cá, a sua vida não era a mesma. Não sabia explicar em que sentido, nem porquê, mas estava certo de que nada voltaria a ser como dantes. O casaco ensopado pela chuva incomodava-o, pesando-lhe como chumbo sobre os ombros, e a gravata, embora desapertada, dava-lhe uma sensação de asfixia. Achou que não tinha necessidade de continuar amarfanhado por aquele tipo de vestuário e desfez-se de ambas as peças, despindo-as e atirando-as para o meio da estrada. Depois, decidiu libertar-se da camisa, também. De tronco nu, sentia-se mais leve. Por isso, tinha a nítida percepção de que cada passo que dava rendia a dobrar. Vendo Leonardo passar, meio despido, algumas pessoas olhavam-no, curiosas. E houve até quem parasse o carro e lhe oferecesse boleia. Um idoso quis partilhar com ele o guarda-chuva. Mas, à medida que andava, Leonardo ia cada vez mais acelerado. Em vez de se cansar, era como se rejuvenescesse a cada movimento de pernas. Por isso, não queria saber de ninguém. Apesar de algumas vagas recordações que insistiam em toldar-lhe a mente. E de uma espécie de sombra que se esquivara por detrás de uma árvore no Príncipe Real. Com o tempo, a tempestade amainaria, com certeza, e os dias tornar-se-iam doces. Nada havia a recear. Porque tudo era temporário. E, assim, até os maiores pesadelos se esvaíam e desapareciam no horizonte. O importante, por isso, era saber esperar. Até que o temporário desaparecesse dentro de outro temporário e assim sucessivamente.

O que Leonardo queria era chegar o mais depressa possível ao seu quarto da Rua da Esperança. Antes que Norberto o pudesse tramar. Não havia que estar com indecisões nem com dúvidas. Daquele dia em diante veriam quem ele era, realmente...

Na zona do Campo Pequeno, quando Leonardo já nem se recordava da hora a que saíra da Calçada de Carriche, houve qualquer coisa que chamou a sua atenção. Qualquer coisa que ele não sabia explicar. Primeiro, pareceu-lhe um som, mas pouco depois tornou-se evidente que não era. A chuva deixava-o confundido. Aproximou-se para observar o que se encontrava sobre o passeio, do lado da praça de touros, mas não conseguiu os seus intentos, porque havia muita gente amontoada no sítio. O que quer que fosse que ali se encontrava ou estava a acontecer só seria visível quando a maioria das pessoas se afastasse. Mas isso nem tão cedo. A água que caía não afastava ninguém da zona. Lisboa era uma cidade de acção. Mesmo quando nada acontecia, bastava um simples toque entre dois carros, o aluimento de uma parede, ou um ligeiro barulho numa obra qualquer para logo se juntar uma quantidade de gente parada a olhar. E, deste modo, a cidade palpitava de agitação, andava de um lado para o outro num frenesim incomparável, saltava sobre si mesma, rua atrás de rua, até surgir outro acontecimento menor que suplantava o anterior, e depois outro e outro...

Leonardo ainda tentou furar o aglomerado de gente, metendo-se por entre as pessoas e os muitos guarda-chuvas, mas não teve hipóteses.

Afastou-se para uma distância considerável e sentou-se no chão à espera de Norberto. A amizade que os unia era sem dúvida superior a qualquer zanga. Leonardo já nem se lembrava dos motivos pelos quais chegara sozinho ao Campo Pequeno. Confundia o Príncipe Real com a Calçada de Carriche e estava convencido de que lhe haviam roubado o casaco, a camisa e a gravata...

Quase uma hora mais tarde, avistou Norberto, caminhando de forma decidida e compassada. Pensou esconder-se atrás de uma árvore e pregar-lhe um susto, mas logo a seguir reflectiu melhor e decidiu que era preferível esperar...







26



Norberto passou por Leonardo como um furacão tranquilo, sem pressas, indiferente, e manteve o ritmo da caminhada, sem ligar à pequena multidão que se tinha concentrado no Campo Pequeno.

Ao ver o amigo passar, a poucos centímetros de distância, Leonardo ainda o seguiu com os olhos, intensa e demoradamente, tornando óbvio que estava disposto a esquecer tudo. Mas a sua postura conciliadora não surtiu efeitos.

Depois não me peças para te ajudar a empurrar o carro! — berrou, levantando-se, ao perceber que o amigo não recuaria. Mas nem assim obteve uma reacção de Norberto.

Em tronco nu, Leonardo percebeu que tinha que fazer qualquer coisa. E decidiu ir andando em direcção ao Saldanha, não fosse Norberto ganhar um avanço irrecuperável. Quer fizessem as pazes, ou não, Leonardo teria sempre que chegar primeiro do que Norberto, independentemente da distância a que ficava a meta de cada um.

Depois de ter deixado Leonardo para trás no Campo Pequeno, Norberto não tinha a certeza sobre o procedimento que o amigo teria. Aquela fora a primeira vez na vida que havia passado por ele sem lhe dirigir palavra. Não podia esconder a emoção que a sua própria atitude lhe causava. Nunca se julgara capaz de semelhante gesto. “Estou a desprezá-lo”, pensou Norberto. “Não é possível, não faz sentido, não tenho motivos para isso. Leonardo precisa de ajuda. Está transtornado por causa da filha. Nunca mais foi o mesmo, desde que a perdeu no Príncipe Real. Estou a ser injusto...”

Apesar do que sentia, contudo, Norberto não estava disposto a ceder. Para não dar parte de fraco. Continuaria a sua caminhada como se Leonardo não existisse. O que não queria dizer que a certa altura não parasse numa montra para tentar espiar o amigo pelo canto do olho. Ou talvez se detivesse num quiosque de jornais e olhasse de viés, enquanto fingia ler as notícias. Não transigiria mais do que isso.

Ao caminhar pela Avenida da República, Leonardo procurava não chamar a atenção do companheiro desavindo. Por uma questão de princípio. Se estavam zangados, era necessário manter a coerência. Sempre que se deparava com um cruzamento, simulava uma mudança de direcção. Mas só o fazia enquanto atravessava a transversal. Uns metros mais adiante estava de novo no passeio da avenida que conduzia ao Saldanha.

Perto do cruzamento com a Duque d’Ávila, Leonardo viu Norberto hesitar, parar, olhar em volta de cabeça baixa e dirigir-se a um indivíduo que estava encostado à porta de um prédio. Dava a ideia de se sentir culpado. Obviamente, pedia-lhe um cigarro. Leonardo viu duas ou três baforadas de fumo elevar-se entre os dois e Norberto afastar-se a seguir, prosseguindo a sua marcha.

Naquele preciso instante, Leonardo sentiu como se Norberto o tivesse traído. A ele, Leonardo, é que o amigo devia ter pedido lume, apesar de ter deixado de fumar. Era ridículo pedi-lo a um desconhecido. E pensou que seria trocado por outro, sem grandes problemas, caso a sua separação de Norberto se viesse a revelar definitiva. Foi invadido por uma onda de calor e perturbação que não soube explicar. Ainda há pouco estava disposto a cortar de vez com Norberto e agora já o incomodava o facto de pensar que seria facilmente substituído.

Entretanto, a breve paragem de Norberto para pedir um cigarro tinha permitido a Leonardo reduzir a distância que o distanciava do amigo.

Leonardo acelerou o passo e em poucos minutos estava praticamente lado a lado com Norberto. Mas não se atreveram a olhar um para o outro.

Se mantivesse o ritmo, Leonardo ultrapassaria o amigo em poucos segundos. Por isso, abrandou. Não queria perder Norberto de vista. Nem desejava que o amigo voltasse a pedir lume a um desconhecido.

Desceram a avenida Fontes Pereira de Melo, lado a lado, fazendo lembrar dois irmãos a caminho da praia num domingo à tarde, sem saberem o que dizer um ao outro.

Perto do Marquês, Norberto foi detido por uma cigana que lhe quis ler a sina. Leonardo ficou às voltas consigo mesmo, sem saber o que fazer para não ganhar vantagem sobre o companheiro. Parar seria o mesmo que dar a entender que se encontrava à sua espera, tornando assim evidente que estava pronto para reatar relações. A fim de iludir o embaraço, não encontrou melhor saída do que baixar-se, dobrar-se sobre o joelho esquerdo e simular que apertava o atacador do sapato. Na tentativa de dar consistência ao estratagema a que recorrera, deixou que Norberto o ultrapassasse, de novo. E só quando o amigo se encontrava a vários metros de distância, acabou de amarrar o sapato e foi no seu encalço.

Seguiram juntos, e mudos, até à Rua da Rosa. A poucos metros de distância da porta do prédio onde Norberto residia, ambos abrandaram a marcha. Norberto porque tencionava terminar ali a sua caminhada e Leonardo porque esperava ser convidado a entrar, nem que fosse por uns breves momentos para recuperar do esforço dispendido desde a Calçada de Carriche. Mas Norberto não esteve com meias medidas. Sem olhar para o amigo, meteu a chave à porta e desapareceu pelas escadas acima.






27



Norberto mudou de roupa e foi dizer à mãe que estava pronto para ir com ela ao rio.

Todavia, a mãe não pareceu dar importância às palavras do filho, continuando de olhos fixos na televisão.

Ele puxou-a por um braço e ela soltou um gemido. Há anos que ninguém a provocava daquela maneira. Nem para lhe pedir um favor, nem para lhe fazer uma vontade.

Mas aquele era o dia em que Norberto parecia decidido a fazer com que a mãe enfrentasse o rio de uma vez por todas. O rio de todas as lamentações. Sempre que a mãe se queixava de alguma coisa que não queria especificar falava do rio. Do rio que, segundo dizia, nunca havia de conhecer. E muitas vezes resmungava, encostada à vidraça, observando os telhados do bairro que a impediam de ver mais longe. Resmungava durante horas, maldizendo a sua sorte. Resmungava como se esperasse em vão por alguém surgido das brumas do fim da rua, cujas fronteiras nunca ousara ultrapassar, alguém esquecido, mas vivo, mortalmente vivo, cada vez mais nítido na sombra dos seus olhares sobre a cidade. Quem resmungasse metade do que ela já resmungara na vida não teria mais lágrimas para derramar. Mas a mãe de Norberto continuava a resmungar pelos anos fora, como se o rio lhe viesse de dentro sem ela o saber.

Ao fim de anos de tanto reprimir sentimentos, emoções, lembranças, desejos, o rio tornou-se mesmo o seu drama. Tudo o resto passou para segundo plano. Os verdadeiros problemas desapareceram por trás do reposteiro dos anos, deixando o rio, sozinho, imenso, inexplicável, como uma espécie de monstro barrando os horizontes à sua frente.

O rio era a sua ferida. O seu medo maior. O seu pesadelo. Nos Açores, onde nascera, nunca tivera oportunidade de ver um rio. Por isso, a irrealidade fora-lhe conquistando a alma ao longo dos anos. E o confronto com o rio acabara por ser sempre adiado.

A mãe de Norberto não percebia como era possível as águas correrem numa direcção e não noutra, como era possível transbordarem, como era possível confundirem-se na foz com o mar, como era possível deslizarem obedientemente por entre as margens... Nada daquilo se adequava aos seus cânones.

Tenho que me vestir.... — resmungou ela, vergada aos argumentos do filho...

Um rio não tem nada de especial. Não exige traje de gala!

Não comeces...

Não há mal nenhum em andar na rua com a roupa que se anda em casa.

Cada um veste como quer...

Passados cerca de trinta minutos, mãe e filho desceram à rua, muito compenetrados do momento que viviam. Logo que se viu fora da porta, a mãe de Norberto olhou para ambos os lados e franziu o sobrolho ao não ver o Opel.

A pé, não vou — disse de forma categórica, enquanto Norberto hesitava sobre a resposta que lhe daria. — Não me digas que o emprestaste ao teu amigo...

Norberto informou-a de que o carro avariara na Calçada de Carriche...

Recusando-se a sair do passeio em frente à porta do prédio onde vivia, a mãe de Norberto olhava o filho como se não acreditasse no que ouvia..., como se a Calçada de Carriche ficasse para lá do Porto ou de Paris...

Não estou a mentir — disse Norberto. — Pensei que podíamos ir a pé porque o rio fica mesmo aqui a dois passos... Podemos ir até ao Cais do Sodré!

O que é o Cais do Sodré?! — perguntou ela, subitamente perdida. — Faz-me lembrar uma marca de vinhos...

Norberto olhou a mãe e percebeu que ela não estava em condições de dar um passo. Pegou-lhe no braço e trouxe-a de volta a casa. Chegados ao patamar do segundo andar, Norberto meteu a chave à porta e fez com que a mãe se sentasse à mesa.

Amanhã, vou buscar o carro e logo a seguir vamos ao rio — disse. Não me vou esquecer. É a primeira coisa que farei quando me levantar. Sei que digo o mesmo há muitos anos, mas desta vez é a sério. Se for preciso, vou já hoje buscar o carro... Agora mesmo. Apesar de já ser tarde. Mas não me importo. Posso ir. E, assim, amanhã, vamos ver o rio ao nascer do dia.

A mãe ouvia e não comentava. Ouvia e acenava ligeiramente com a cabeça.







28



No dia seguinte, a mãe preparou-se para sair bem cedo pela manhã, mas teve que esperar horas até que Norberto regressasse a casa. Já passava das três da tarde quando apareceu. Estacionou mesmo à porta, deixou o carro a trabalhar, para não correr o risco de o motor ir abaixo, e galgou as escadas de dois em dois degraus. Bateu à porta, avisando que estava tudo a postos para irem ao rio.

Desceram os dois e Norberto deixou a mãe junto ao automóvel, à espera do lado oposto ao do condutor, enquanto ele ia pelo outro lado desamarrar a porta que estava presa por um fio. Podia muito bem ter resolvido aquele pormenor com antecedência, mas não lhe ocorrera. Agora, a mãe estava fora do carro, pacientemente, de casaco e mala na mão, na expectativa de que ele lhe abrisse a porta por dentro.

Depois de praguejar contra a forma como Leonardo tinha por hábito prender a porta, Norberto lá conseguiu destrancá-la.

Até parece um cofre bancário! — resmungou.

O carro avançou, por fim, sem outros incidentes, com a mãe de Norberto absolutamente silenciosa a seu lado. Há anos que não entrava num automóvel, que não saía da zona onde residia, que não acompanhava o filho a parte alguma. Mesmo que quisesse dizer qualquer coisa, não saberia o quê. Discutir com Norberto era inconveniente e apesar da demora que tivera para trazer o carro, a verdade é que estava a cumprir uma promessa de anos, levando-a a ver o rio. Agora, só esperava que a viagem decorresse com normalidade e segurança.

Norberto ia apreensivo, embora procurasse dar mostras do contrário. Não queria que a mãe notasse nele qualquer sinal de nervosismo. Mas o certo é que ainda não conseguira esquecer o comportamento do Opel no dia anterior. Receava que a avaria se repetisse agora que a mãe estava prestes a ver o rio.

Para afastar medos, carregou no acelerador enquanto mantinha a embraiagem a fundo, a fim de verificar se o motor respondia com prontidão. Repetiu a manobra por duas vezes. Os resultados deixaram-no satisfeito.

Uns metros à frente, reparou que havia engarrafamento de trânsito. Já não ia a tempo de escapar por outra rua e atrás de si vinham dois carros. Embora não houvesse indícios de que pudesse estar perante um entupimento de grandes proporções, Norberto pressentiu que algo podia acontecer. Não fez qualquer comentário, para não chamar a atenção da mãe. Contudo, notou pelo canto do olho que ela puxara do terço e se pusera a rezar baixinho.

Para desanuviar o ambiente, Norberto desatou a rir e disse à mãe que não se preocupasse porque ele passava a vida a conduzir em Lisboa. Era tão experiente como um taxista.

Mas aos taxistas também acontecem problemas... — foi a resposta dela. — Ninguém está livre de um azar...

Estamos quase a chegar ao rio — replicou Norberto, para não afunilar a conversa.

Oxalá...

Dali a instantes, Norberto reparou que a temperatura do carro estava a subir. “Agora é que são elas”, pensou, sentindo um aperto no peito. “Se o trânsito não anda, estamos tramados”. E reparou também que a mãe fazia subir o tom das suas preces quase ao mesmo ritmo da temperatura do carro. Como se pressentisse alguma coisa.

Norberto ainda pensou desligar o motor, mas se o fizesse corria o risco de não conseguir pô-lo de novo a trabalhar. Mantendo-o ligado, o mais provável era que a máquina se pusesse a vomitar fumo por todos os lados, ameaçando explodir a qualquer momento.

E como Norberto não desligou o motor, foi isso que aconteceu, ante o pânico da mãe.

Calma!, calma! — pediu Norberto. — Não é nada de especial, estamos a dois minutos de casa, vamos resolver o problema, isto já passa...

Só que a mãe não o ouvia. E quanto mais o filho procurava serená-la, mais ela pensava que a situação se agravava. Por isso, o seu nervosismo aumentava a um ritmo incontrolável. Ao ver o fumo crescer e adensar-se, obstruindo-lhe a visão, a mãe de Norberto sentiu que estava a ser levada para outro mundo. E entrou em delírio.

É um vulcão! Um vulcão de fogo a arder! Um fogo a arder de lava! Vamos morrer todos queimados!! Eu devia era ter ficado em casa. Quero sair! Abram a porta...

Aflito para tentar retirar a mãe do automóvel, Norberto deixou-se cair por cima dela, a ver se conseguia fazê-la sair pelo lado oposto ao do condutor. Mas a porta tinha encravado e nem com socos dava mostras de ceder.

Não chores Norberto, que a mãe está aqui para te proteger e agasalhar — dizia ela, embalando o filho ao colo, enquanto entoava uma canção antiga, com voz esganiçada, e o apertava contra ela, dificultando-lhe os movimentos. — Não tenhas medo da chuva, nem dos trovões, nem do mar bravo, nem da ventania...

Quanto mais Norberto esbracejava e esperneava para se libertar dos braços da mãe, mais ela o chegava a si, mais se agarrava a ele, como se receasse perdê-lo sob um aluimento de lava.

A poucos metros do carro, dois homens atiravam baldes de água para esfriar o motor, mas faziam-no de forma tão atabalhoada que acabaram por inundar o interior do veículo através dos vidros semiabertos.

O mar está a galgar a terra! — pôs-se então a gritar a mãe de Norberto. — Acudam! Se vires uma tábua, agarra-te Norberto! Não te preocupes comigo, que já não sirvo para nada. Nada e reza..., meu filho, que hás-de alcançar terra! Nada e reza...

Ante a dificuldade em libertar-se da mãe, Norberto puxou-a para o assento do condutor e logo a seguir fê-la cair na rua, por entre uma grande confusão de gritos, gemidos, lamentações.

Vendo-se fora do carro, a mãe levantou-se e desatou a fugir pela rua fora, sem reparar na porta do seu prédio, sem ver nada, sem reconhecer as esquinas e janelas da sua própria vizinhança, sempre em frente, sempre gritando e resmungando.







29



Ao fim de três dias, o Opel estava de novo na estrada. Norberto falara com um vizinho que lhe dera um jeito no motor e que se limitara a resmungar umas sílabas sem nexo quando confrontado com a questão do preço.

Sem perder tempo, Norberto meteu-se no carro e avançou por Lisboa, desalmadamente, freneticamente, de uma ponta à outra..., cheio de palpitações!

Subia e descia avenidas e ruas a grande velocidade, começava numa e acabava noutra, cortava adiante, voltava atrás, à esquerda, à direita, sempre a acelerar, sem se preocupar com o combustível que tinha no depósito.

A certa altura, deu consigo em Campo de Ourique. Sem saber por onde entrar ou sair. Acontecia-lhe sempre aquilo em Campo de Ourique. Perdia-se, irremediavelmente. Não sabia explicar porquê. Era a única zona de Lisboa onde não conseguia associar duas ruas consecutivas. Só era capaz de lá sair quando descobria a Saraiva de Carvalho. Mas enquanto isso não acontecia, era um sofrimento, uma asfixia. Andava às voltas, curvas e arrecuas, e cada minuto gasto sem se encontrar era mais uma quantidade de palpitações que sentia.

Só ao fim de mais de uma hora, saiu de Campo de Ourique. Como se tivesse dezenas de horas em atraso para recuperar, voltou a acelerar. Jardim da Estrela, Lapa, Navegantes, Janelas Verdes. O cheiro a café que invadia as ruas entrava-lhe pelo carro dentro como um vírus imbatível. Depois a Alexandre Herculano atravessava a cabeça da sua cidade, saltando para a Duque de Loulé, Luciano Cordeiro, confundindo tudo, Campo de Santana, avenida da República, EUA, Brasil, pelo mapa fora, sem limites, galgando regras e distâncias até à ponta dos dedos.

Lisboa não tinha princípio nem fim. Era um amontoado doce que alastrava pelos olhos e fazia chorar. Uma cebola. Norberto puxava de um lenço de papel, limpava as lágrimas e continuava. Almirante Reis, Graça, Rua Augusta, Defensores de Chaves, Parque Eduardo VII, Ceuta, eram clarões que se acendiam na sua mente e logo desapareciam.

Pensou em Leonardo. Como encontrá-lo agora? Em que direcção ficava a Rua da Esperança? Dava-lhe a impressão de aquela ser a sua primeira vez em Lisboa. Reconhecia a cidade pela cor e pelo cheiro, contudo não se entendia com o mapa das ruas.

Vou estacionar”, pensou. Mas logo desistiu, não fosse o motor recusar-se depois a trabalhar.

Perto da Gulbenkian, um polícia fez-lhe sinal com a mão. Norberto não ligou e acelerou. O guarda estava a pé. Não tinha hipóteses de o perseguir. Avenida João XXI, Roma, Igreja, Gago Coutinho, Aeroporto, Olivais, Sapadores. Tentou parar em Roma, mas já estava noutra. Martim Moniz, Rossio, Ouro, Terreiro do Paço, o rio, lá estava o rio, escuro, nem parecia de água, modorrento, embalando cacilheiros entre uma margem e outra. Palpitações, sempre palpitações. O cheiro de Almada no outro lado do rio entrava-lhe nas narinas. Era um cheiro que obrigava a desviar o nariz, picante, intenso. Almada cheirava a pinheiro e ossos perdidos nos areais.

Norberto só conhecia Almada de longe. Nunca se atrevera a atravessar a ponte. E os anos foram passando. A mãe nunca vira o Tejo. Ele nunca o atravessara...

De repente, lembrou-se de Mário. Um velho amigo que já não via há uma quantidade de anos e que passava o tempo a rir-se com tudo o que via e ouvia. Norberto precisava de estar com ele. Será que ainda ria como antes? Precisava de estar com alguém que se risse de tudo. Das ruas, das casas, das pessoas, das lojas, das consciências, dos problemas. Que não pensasse em mais nada. Só no riso e na boa disposição.

Decidiu ir à procura de Mário naquele preciso momento. Mas por onde começar? Primeiro tinha que se lembrar onde morava. Santa Cruz de Benfica, não. Amadora, não. Cacém, não. Alfragide, não. Era um primeiro andar discreto, algures, pintado de branco, com uma varanda fechada...

Sem nunca abrandar a velocidade, deu um pulo no assento no exacto instante em que atravessava um sinal vermelho, bateu com a mão na fronte e disse:

Sete Rios!, caraças, Sete Rios!!







30



Norberto seguiu para Sete Rios com a firme decisão de encontrar Mário. Não sabia o nome da rua onde o amigo morava, nem o número da porta. Mas estava disposto a percorrer todas as esquinas até encontrar a varanda fechada daquele primeiro andar que resistia vagamente na sua memória.

Chegado a Sete Rios, parou o carro diversas vezes, para ver melhor os prédios, os números das portas. Tentou saber de Mário junto de diversas pessoas.

Mário quê?... — perguntavam.

Mário... — era a sua resposta.

Ninguém sabia. Como se Mário não existisse. Voltava a entrar no carro e avançava. Sentia-se frustrado, mas não desistia. “Tenho que descobri-lo”, dizia para si mesmo.

Ao passar pela segunda ou terceira vez junto ao Zoológico, viu Leonardo, que estava encostado ao gradeamento perto da entrada. Parecia à espera de uma oportunidade para ingressar no recinto sem pagar. Aquele era o último sítio do mundo onde alguma vez imaginaria encontrá-lo.

Parou o automóvel sobre o passeio e fez sinal ao amigo. Depois, apitou, pôs a cabeça fora do carro e chamou por ele, ao mesmo tempo que se punha a desamarrar a porta do lado oposto. Leonardo entrou, sentou-se, fazendo ranger o assento, e não disse nada.

Lembras-te do Mário?... — perguntou Norberto.

Leonardo limitou-se a responder-lhe com uma careta.

Estás com cara de poucos amigos... — insistiu Norberto.

Desliga o motor — disse Leonardo.

Passa-se alguma coisa?

Estou só a pensar...

Podes ajudar-me a encontrar o Mário...

Queres entrar para dar uma volta e ver os bichos?

Não posso. Tenho que ver o Mário...

Leonardo pôs-se a coçar as costas contra o assento. Ajustava-se às saliências laterais e pressionava as partes mais afectadas pela comichão.

Nunca mais resolves esse problema — disse Norberto.

Como queres que eu o resolva?

Um dia, ficas sem pele...

Não tive comichão enquanto andei sozinho por aí...

Será que és alérgico ao Opel?...

A minha ideia era roubar um animal e desaparecer daqui para fora!

Estás sempre à procura de problemas.

Agora, só pensas nesse Mário...

Podíamos passar uns bons momentos com ele.

Deves estar com palpitações...

Norberto procurou não ouvir o comentário do amigo, carregou no acelerador e voltou à estrada, perguntando por Mário sempre que se lhe deparava uma oportunidade numa esquina ou semáforo.

Se ele mora em Sete Rios, tinham obrigação de saber quem é — disse Leonardo.

Já perguntei a uma quantidade de gente, mas ninguém o conhece. Podiam ao menos dar um palpite — acrescentou Norberto.

Há quantos anos não o vês?

Há uns sete ou oito...

Se calhar, já não tem a mesma aparência. Pode ter deixado crescer a barba, pode ter emigrado, pode ter sofrido um acidente..., pode ter-lhe acontecido tanta coisa. Nunca se sabe o que acontece a uma pessoa quando deixamos de vê-la.

Pararam numa bomba de gasolina. Norberto saiu do carro com ar decidido e aproximou-se de um dos empregados no momento em que este servia um indivíduo empertigado e sombrio. Seguindo a cena de longe, Leonardo achou que o amigo não devia ter feito a abordagem de forma tão ostensiva.

Ao ver a cara de Norberto a poucos centímetros do seu nariz, o empregado levantou o braço com a agulheta e deu um berro a despropósito, tentando afastá-lo! Leonardo percebeu que o homem estava com receio de qualquer coisa. O dono do veículo apressou-se a fechar o vidro.

Não me venha com tretas! — ouviu-se o empregado vociferar.

Mas Norberto não se deixou impressionar e continuou a avançar sobre ele, sempre a perguntar por Mário, como se o interlocutor tivesse a obrigação de conhecer quem ele procurava. E antes que Leonardo tivesse tempo de sair do carro para apaziguar os ânimos, o empregado perdeu a paciência, apontou a agulheta a Norberto como uma pistola e desatou a esguichar combustível na sua direcção, enquanto espumava e gritava que não tinha um centavo em seu poder.

Completamente encharcado de gasolina, Norberto só então compreendeu o perigo que corria. Se alguém lhe atirasse um fósforo naquele momento, ficaria reduzido a um monte de cinzas. Depois dos primeiros instantes de perplexidade, procurou refúgio no Opel, enquanto Leonardo comentava de forma insistente:

É melhor mudares de roupa!

Mas Norberto respondeu que nem pensar. Dentro de minutos, teria a roupa seca.

E o cheiro? — perguntou Leonardo.

O cheiro também desaparece...







31



Vamos embora — dizia Norberto. — Vamos embora de vez. Vamos desaparecer...

Leonardo ouvia as palavras do amigo e sentia-se cambalear por dentro.

Desaparecer para onde?... — perguntou.

Para onde calhar... — respondeu Norberto.

Vai ser sempre a mesma coisa. É sempre assim... Quando se desaparece num sítio aparece-se noutro a seguir. Não podes simplesmente fugir e pensar que resolves tudo, não vale a pena.

Espanha! Espanha!... — cantarolava Norberto, enquanto acelerava pela Marginal de Cascais. — Espanha é já ali adiante!

Leonardo pôs-se a cantarolar com ele, só para não ficar à parte. Sempre contribuía para alegrar o ambiente.

Pouco depois, ambos abriram os vidros, deixando entrar o crepúsculo para dentro do Opel, que seguia como uma nave em direcção ao tempo desconhecido. Com os braços de fora, cantavam “Espanha, Espanha!”, até à rouquidão.

E se a polícia nos manda parar? — perguntou Leonardo.

Já não há polícia! — foi a resposta do companheiro. —Já não há polícia!! Agora, só paramos em Espanha.

E os dois entoavam o novo refrão, num berreiro que praticamente dispensava qualquer melodia, “Já não há polícia!, já não há polícia!” A seguir “Espanha!, Espanha!” e por aí fora, navegando na marginal junto ao rio que se diluía nas horas.

Estou cheio de calor — disse Norberto.

É da gasolina! — respondeu Leonardo, prontamente.

Deixa-te disso.

O carro pode incendiar-se.

Não digas tolices!

Estou a ouvir um barulho...

Qual barulho?

Deve ser uma peça que saltou do motor.

Norberto apressou-se a encostar à berma da avenida. Não podia correr o risco de ficar sem carro aos poucos, aos pedacinhos, enquanto as partes iam caindo ao longo do percurso. Tinha que chegar a Espanha. Independentemente da direcção que seguia.

Saíram ambos do carro, abriram o motor, que continuava a trabalhar, e puseram-se a analisar a situação.

Deve ter sido uma vela que se desprendeu... — alvitrou Leonardo.

Não me distraias — pediu Norberto, com as duas mãos pousadas na grelha frontal do veículo, enquanto se inclinava para a frente, procurando ver melhor os pormenores da máquina.

Não te esqueças que tens gasolina em todos os poros... — avisou Leonardo. — Qualquer faísca pode dar cabo de ti de um momento para o outro.

Mas Norberto estava longe de dar ouvidos ao amigo. E pôs-se a mexer no motor, aqui e ali, certificando-se de que todas as peças estavam no sítio, tampas, anilhas, tubos...

O radiador está esquisito... — comentou Leonardo.

Norberto respondeu-lhe com um gesto de mão, pretendendo dizer que já bastava de tolices, o que fez com que Leonardo voltasse para dentro do Opel, furioso consigo mesmo.

Ao fim de cerca de cinco minutos, Norberto fechou o motor com estrondo, sentou-se no carro e disse bem alto para quem o quisesse ouvir:

Daqui a pouco estamos em Barcelona!

Atravessaram Cascais a toda a velocidade, gritando com os punhos fechados estendidos para fora do carro — já não há polícia!, já não há polícia!!

Passada a Boca do Inferno, Norberto e Leonardo entreolharam-se, mudos. O carro deslizava com o ruído das ondas. Impelido pelo vento dos dias que não acabam. E Norberto exclamou num grande brado:

Espanha à vista!







32



Pararam uns metros adiante, junto à Praia do Guincho, sem desligar o motor. Sempre prontos a avançar para nova etapa, nova cidade, novo país.

Mas sentia-se que a viagem tinha chegado ao fim. Estava escrito nos olhos, que a escuridão fazia brilhar nas ondulações sem rumo. Depois de uns milhares de quilómetros percorridos, todas as descobertas terminavam.

A gasolina deve estar nas últimas — disse Leonardo.

Ainda dá para uma volta na praia! — respondeu Norberto.

Leonardo não conseguiu conter uma gargalhada. E disse que o Opel não andaria mais do que meia-dúzia de metros no areal.

Norberto não gostou da insinuação e replicou que Leonardo não entendia patavina de automóveis. Estava farto de andar no Opel, de viajar com ele para todo o lado, de enfrentar as situações mais imprevistas, e nem assim confiava nas suas capacidades.

Às vezes, não sei que ideias tens na cabeça... — desabafou Norberto, que aproveitou para sair do carro e ajudado pela luz dos faróis se pôs a estudar os acidentes do percurso arenoso à sua frente.

Quando se chega a um certo ponto da viagem, não dá para desistir, nem para recuar — disse Norberto a meia voz, como se tentasse convencer-se a si próprio de alguma coisa que o inquietava. Depois, voltou-se na direcção do mar e pôs a mão em pala sobre os olhos, tentando ver para além da escuridão que o encandeava. O frio salgado fê-lo apertar a camisa contra o corpo.

Ao sentar-se de novo no carro, voltou-se para Leonardo e disse textualmente:

Vou provar-te que este carro é capaz de andar na praia!

Só te falta dizer que esta carroça velha é capaz de nos levar ao Cabo Bojador! — respondeu Leonardo.

Nem imaginas o que te espera.

Devias pensar melhor no que te vais meter...

Norberto não esteve com grandes hesitações. Enquanto Leonardo ia fazendo avisos, carregou diversas vezes no acelerador e, por fim, arrancou em direcção à noite escura, dando a impressão de que o carro boiava no vazio. Depois, o veículo aterrou. Bateu com as quatro rodas no chão, fazendo gemer os amortecedores e a carroçaria, que mais parecia uma lata de conserva gigante a desengonçar-se.

Isto é um verdadeiro tanque de guerra! — exclamou Norberto em tom de desafio. — E ainda tens muito para ver.

Não exageres — pediu Leonardo, a meia voz, agarrando-se ao porta-luvas.

Quero lá saber... — replicou Norberto.

E foi por ali adiante, quase nada vendo à sua frente, aos solavancos, seguindo na direcção ao mar, guinando à esquerda e à direita, como se fugisse às balas da polícia, sempre aos gritos, às gargalhadas, aos urros.

Ninguém me apanha! — vociferava. — Ninguém me apanha!!

O carro derrapou durante uns ligeiros segundos numa elevação de areia, mas Norberto não deu sinais de fraquejar. Forçou o acelerador e continuou, pela areia fora, parecendo que deslizava numa auto-estrada de Espanha.

Vamos ficar enterrados na areia — comentou Leonardo.

E foi o que aconteceu. O Opel sucumbiu ao piso traiçoeiro do areal e depois de diversos gemidos e contorções, recusou-se a prosseguir viagem.

Norberto não queria acreditar no que estava a acontecer:

Deve ser alguma avaria. Este carro tem a obrigação de andar na areia sem problemas.

Pronto — afirmou Leonardo. — Não vale a pena estares com esperanças. A tua sorte é estarmos longe do mar.

Em silêncio, Norberto abandonou o veículo e foi verificar o sítio onde as ondas rebentavam. Logo a seguir, voltou para o carro e disse:

Vês como o motor continua a trabalhar que nem um relógio?...

Desliga-o, para não gastar gasolina.

Mas Norberto pôs-se a acelerar desesperadamente, recusando-se a aceitar as fraquezas do seu Opel.

Leonardo ainda saiu do seu lugar e foi dar uns empurrões na traseira do carro, a ver o que acontecia, mas o seu esforço não resultou.

Ao fim de uns minutos, a situação não deixava margem para dúvidas. O Opel tinha uma das rodas traseiras enterradas na areia até quase meio metro de profundidade.

Norberto e Leonardo sentaram-se no carro, sem saber o que dizer um ao outro.

Amanhã, resolve-se... — murmurou Norberto, entredentes, ao fim de uns minutos.

Achas que podemos dormir descansados?...

Com a escuridão, ninguém nos vê.

Cerca das quatro da manhã, Leonardo acordou, sobressaltado, com o barulho das ondas a bater na parte da frente do carro. Poucos minutos depois, Norberto também despertou.

Chegámos a Espanha! — disse.

Temos que sair daqui — replicou Leonardo. — A maré está a encher.

Não me vou embora sem o Opel — sentenciou Norberto.

Leonardo desatou a rir, mas o amigo olhou-o com o ar mais sério deste mundo, enquanto adiantava:

Não és obrigado a ficar...

Vamos pedir ajuda — propôs Leonardo.

A esta hora, não temos hipóteses...

Leonardo espreitou pela janela do seu lado e reparou que o mar já tinha subido até praticamente metade da porta.

Temos que fugir! — disse.

A maré vai vazar... — respondeu Norberto. — Mais tarde ou mais cedo, vai vazar. Amanhã, alguém nos há-de ajudar. Alguém nos há-de emprestar uma corda para rebocarmos o carro. À noite, tudo parece mais negro. Não te preocupes...

O problema é que agora a maré está a encher! — argumentou Leonardo. — Não percebes que é perigoso?!

És um medricas!

Isto é uma loucura.

Vamos até ao fim...




FIM